Vivemos nos últimos anos uma verdadeira procissão de enterros tecnológicos, produtos, serviços e coisas que nos eram úteis e foram ficando para trás com passar das rodas do mercado.
[09.04.2021]
Por Alexandre Adoglio, CMO na Sonica e empreendedor digital.
Escreve semanalmente sobre Cultura Digital para o SC Inova
Era a estreia de mais uma temporada da série animada infantil Pokémon, no Japão, uma sensação genuína que atraía cerca de 4 milhões de espectadores por semana. Uma pesquisa estimou que 55% das crianças em idade escolar no distrito escolar de Kawasaki, em Tóquio, seguiam a série. O programa começou a ir ao ar em 1º de abril de 1997 e focava nas aventuras de Ash e monstros afáveis como Pikachu em sua tentativa de coletar uma criatura de cada espécie para treinar para o combate. E era também uma história em quadrinhos, um videogame Nintendo, um álbum de figurinhas e muito mais. O fandom devotado logo se espalharia para os Estados Unidos, Europa e Brasil.
Mas então algo peculiar aconteceu – tão peculiar que se tornou assunto de pesquisas em revistas médicas. No episódio que foi ao ar às 18h30 da terça-feira, 16 de dezembro de 1997, uma explosão cataclísmica entre raios lançados por Pikachu com luzes piscantes vermelhas e azuis começou a pulsar na tela. Embora a sequência tenha durado apenas alguns segundos, centenas de crianças foram atingidas por uma resposta imediata e visceral que variou de dores de cabeça e tonturas a ataques generalizados. Os hospitais japoneses começaram a tratar os telespectadores com sintomas epilépticos.
Essa onda de efeitos sintomáticos logo tornou-se notícia internacional, pois seria a primeira vez que um programa de televisão provocava uma consequência tão direta e imediata para a saúde de sua audiência. Algumas pessoas inicialmente descartaram a coisa toda como uma farsa ou possivelmente algum tipo de histeria em massa, mas as reações físicas foram genuínas. O que tornou esse episódio de Pokémon tão perigoso – mesmo entre aqueles espectadores não diagnosticados com epilepsia? E isso poderia acontecer de novo?
EVOLUÇÃO NÃO É SINÔNIMO DE INOVAÇÃO
Desde os primórdios, toda inovação tecnológica humana é promovida por alguma espécie de dor que nós temos. Ou melhor, inventamos algo para suprir desde necessidades básicas até mesmo gerar novas demandas e soluções para promover o desenvolvimento da sociedade. E desde que fizemos a primeira fogueira, nosso entendimento e compreensão da inovação sempre foi acompanhada pela evolução da nossa cognição, pelo menos por boa parte da sociedade dita civilizada. Porém, com a rápida inovação tecnológica nos últimos anos, principalmente a digital, nossa evolução não está dando conta de acompanhar as inovações que são colocadas à mesa, em uma profusão de novas ferramentas, códigos e formas novas de fazer as coisas.
Como Jung já pontuou, a sociedade moderna vive da angústia de saber que nada mais seu é natural.
No caso do Pokemón, sabe-se que aquela ocasião foi a primeira vez que utilizou-se tecnologia digital para edição de um desenho animado, permitindo aos criadores um detalhamento de cenas nunca antes testado em um audiovisual. Até então, todo filme que assistíamos na televisão era originalmente captado no padrão 24 quadros por segundo, sendo cada quadro um fotograma. Quem fotografou com filmes 35mm deve lembrar que cada rolo permitia entre 24 e 36 fotos, sendo cada foto este fotograma. Então, para produzir uma animação como Pokèmon a equipe precisaria desenhar na mão 24 frames para cada segundo de desenho. Pode conferir aqui quão trabalhoso era este processo.
Neste evento da epilepsia televisiva do Japão, (sim, deram nome pra doença), a equipe de criação do desenho conseguiu fatiar cada segundo do desenho em incríveis 120 pedaços digitais, permitindo um nível de controle jamais ousado nem por Walt Disney. Ao configurar o desenho em uma edição final, os criativos fizeram o tal efeito nas bochechas do querido Picachu piscarem 120 vezes por segundo durante 6 segundos, sendo suficiente para mandar cerca de 700 pessoas pro hospital em níveis diversos de convulsão. Efeito da tal cognição da época que não conseguiu acompanhar a inovação da tecnologia.
MÚSICOS QUE ODEIAM MP3
E como toda aderência à inovação, vivemos nos últimos anos uma verdadeira procissão de enterros tecnológicos, produtos, serviços e coisas que nos eram úteis e foram ficando para trás com passar das rodas do mercado. Câmera fotográfica, gravadores de áudio, máquina de escrever, filmadoras, quanto disso tudo estávamos realmente preparados para abandonar em detrimento de uma nova aquisição?
Um dos casos mais enfáticos foi com a música, que teve seu consumo modificado várias vezes em um par de anos. Antigamente, quando os músicos faziam tours presenciais e divulgavam seus trabalhos nas rádios, podíamos consumir os LPs de vinil, que evoluíram de muitas formas desde sua invenção no fonógrafo. Mas com a evolução dos “tocadores”, que migraram das agulhas acústicas para CDs e depois para MP3, encaramos um problema sério de espaço dentro dos dispositivos.
Quem, há algumas décadas, não teve um walkman que só podia tocar 60 minutos de música, um trambolho de carregar na cintura com pelo menos 500g de plástico e metal? Como os dispositivos MP3 podiam carregar muita música em um espaço reduzido, a “indústria” optou por, digamos, editar a música de forma que coubesse no pequeno espaço das faixas digitais. Nasceu aí a taxa de compressão.
Não que as adolescentes percebessem algo, porém músicos profissionais desde sempre reclamam que seus iPods, tocadores e afins, acabam com a qualidade sonora de qualquer música. Já os serviços de streaming de música se propuseram a oferecer uma ótima qualidade de som para para seus usuários, principalmente quando consideramos a reprodução das canções em conexão com operadoras móveis. Porém, quem tem um sistema de áudio ou fones de ouvido de qualidade superior, mesmo configurando a transmissão para a maior taxa possível, percebe as perdas causadas pela compressão.
Para resolver este problema, vários serviços criaram uma versão da transmissão sem a compressão, chamada de Hi-Fi por grande parte dos players. É o caso do Deezer, que recém lançou um plano, liberando o áudio em máxima qualidade intitulado FLAC. Segundo a empresa, ao tocar uma música para tocar no plano gratuito faz a canção ser reproduzida em 128 kbps por padrão. Já o novo plano libera o streaming em FLAC, sem compressão, com 1.411 kbps em 16 bits, uma qualidade de áudio idêntica ao que um CD consegue entregar.
CINEASTAS QUE ODEIAM SMART TV
Tom Cruise e o diretor Christopher McQuarrie, divulgaram um vídeo em 2018 alertando os telespectadores de que a suavização de movimentos (também conhecida como interpolação de vídeo ou o “efeito de novela”) poderia estar mudando a qualidade da imagem de seus filmes.
Com o objetivo de reduzir o desfoque de movimento, a suavização é útil quando você assiste à ação rápida nos esportes, mas não é um bom modo para assistir a um filme ou série mais “lento”. No vídeo os diretores pedem aos telespectadores que desliguem o recurso de suavização de movimento em suas TVs, mas infelizmente os fabricantes não simplificam esse processo pois, além dos controles de suavização de movimento ficarem escondidos em seus menus de configuração, existe uma variedade de nomenclaturas diferentes para o mesmo recurso.
Explicando, ao assistir sua TV e perceber que as pessoas estão se movendo de forma pouco natural, parecendo que tudo o que você está assistindo é de alguma forma muito suave, provavelmente sua TV está com o modo novela ativado. Ao contrário de TVs de plasma mais antigas, os monitores LCD apresentam problemas com desfoque de movimento, sendo que alguns são mais sensíveis a ele do que outros, mas quando uma TV LCD precisa exibir movimentos rápidos, como esportes ou games, por exemplo, o desfoque pode ser excessivo, obscurecendo os detalhes da imagem.
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Como a TV não é entregue a uma grande taxa de quadros, a suavização de movimento é uma forma de “falsificar” uma taxa de quadros mais alta, inserindo imagens entre 30 ou 60 quadros por segundo que vêm dos canais de TV. Essas novas imagens são criadas quando sua TV analisa a imagem e adivinha digitalmente quais imagens novas podem ser inseridas. Este jogo de adivinhação de quadros é usado até mesmo em algumas TVs OLED. O modo é coloquialmente conhecido como “modo novela”, porque faz com que o que você está assistindo pareça uma novela.
O movimento contrário a esta tecnologia cresceu e hoje conta com apoio de outros renomados diretores engrossando o coro, como Christopher Nolan e Martin Scorsese.
Mais uma vez a tecnologia sobrepujou nossa cognição, pois para que detalhes do movimento possam ser percebidos pela maioria dos espectadores optou-se por sabotar a qualidade como um todo. Aqui um tutorial para desabilitar essa “ajuda”.
Configuração por conta e risco de você, leitor.
JEDIS E SABRES DE LUZ
Mesmo estudado a fundo, os efeitos das tecnologias na audiência não deixaram de causar preocupações. Em 2018, alguns cinemas colocaram cartazes alertando os telespectadores que luzes piscantes em Os Incríveis 2 poderiam causar problemas para quem tem epilepsia fotossensível. Posteriormente, a Disney reeditou o filme no Reino Unido para que ele cumprisse o teste Harding Box, que estabelece padrões para as taxas de flash e oscilação da luz e pode reduzir – embora nunca eliminar – o potencial de problemas.
A empresa também emitiu um alerta para o lançamento de Star Wars Episódio IX: The Rise of Skywalker em 2019, afirmando que o filme tem “várias sequências” utilizando luzes piscando. No cartaz de divulgação em alguns cinemas recomendava-se:
- Pedir para algum amigo assistir ao filme antes para ver quais partes há mais situações de flashes na tela
- Pedir para que essa pessoa te acompanhe na sessão e te avise previamente quando essas situações ocorrerem
- “Treinar” esse acompanhante para que ele saiba como agir em caso de convulsão
Em seu livro, A Vingança dos Analógicos (Ed.Rocco 2016), Steve Sax pontua que todo dia vemos algo ampliado, melhorado, alterado ou abalado pela tecnologia digital. Nossos carros, empregos, casas e até nossa vida sexual. Na narrativa limpa e ordeira do progresso, a tecnologia mais recente torna a anterior obsoleta. É bom ficar atento a quão aderente realmente somos a todas estas novas tecnologias, percebendo como estamos sendo afetados em níveis até antes desconhecidos.
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