O modelo facilita o acesso à tecnologia, permitindo que milhares de jovens possam estudar em equipamentos e softwares de baixo custo – o que pode ser uma das soluções para a escassez de mão de obra no setor.
[23.04.2021]
Por Alexandre Adoglio, CMO na Sonica e empreendedor digital.
Escreve semanalmente sobre Cultura Digital para o SC Inova
Foi em uma manhã deste atípico abril de 2021 que vimos um feito inédito para a humanidade causar um enorme buzz por toda nossa internet, quando o Ingenuity levantou vôo na fina atmosfera marciana. Superando o frio extremo e o ar perigosamente rarefeito, o helicóptero autônomo de US$ 85 milhões girou suas pás rotor de fibra de carbono para subir cerca de três metros, pairando brevemente na brisa antes de pousar com segurança de volta ao solo.
Conquista incrível para a equipe da NASA, mas também impulsionada em parte por um time invisível de desenvolvedores de código aberto, que mesmo sem saber colaboraram para que o software do audaz helicóptero desafiasse não só uma atmosfera hostil, mas também o ceticismo de muitos.
Não que tenha sido a primeira vez, pois esta mesma comunidade agregada no Github já havia colaborado para outro grande feito da ciência, a primeira fotografia de um buraco negro em 2020, mostrando que a livre colaboração via open source pode nos levar a termos ainda não descobertos na capacidade humana.
E, também pela primeira vez, esta plataforma decidiu revelar todos os desenvolvedores e programadores que participaram de alguma forma na colaboração deste código, colocando um novo emblema da missão de helicóptero da Mars 2020 no perfil do GitHub de cada um que contribuiu para as versões específicas de quaisquer projetos e bibliotecas de código aberto usados pelo Ingenuity. Você pode verificar a lista completa de projetos como SciPy, Linux e F Prime (F ’) que foram usados pela equipe JPL aqui.
O NASCIMENTO FREE
Na década de 1960 todo o software de computador era fornecido como parte do hardware, sem valor algum em separado. Na época, o código-fonte, a forma legível por humanos, era geralmente distribuído com o software, fornecendo a capacidade de corrigir bugs ou adicionar novas funções. Como as universidades foram as primeiras a adotarem a tecnologia de computação, começaram a realizar modificações nos códigos e disponibilizando-as abertamente, de acordo com os princípios acadêmicos de compartilhamento de conhecimento.
Nesta época quase todos os softwares foram produzidos por acadêmicos e pesquisadores corporativos trabalhando em colaboração, muitas vezes compartilhados como softwares de domínio público. Como tal, era geralmente distribuído sob os princípios de abertura e cooperação há muito estabelecidos nos campos da academia, e não era visto como uma mercadoria em si. Esse comportamento comunitário mais tarde se tornou um elemento central da chamada cultura de hacking (um termo com uma conotação positiva entre os programadores de código aberto).
À medida que o mercado de tecnologia se desenvolvia, os sistemas operacionais de grande escala amadureciam, e as empresas proprietárias não mais permitiam modificações no software operacional fechando esses sistemas operacionais. Em contrapartida, o movimento acadêmico de colaboração acabou se consolidando em associações que passaram a atuar em utilitários e outros aplicativos de função agregada, fazendo surgir novas empresas para promover o compartilhamento de software livre.
Contudo, o conceito de compartilhamento gratuito de informações tecnológicas existia muito antes dos computadores. Nos primeiros anos do desenvolvimento automotivo, uma empresa possuía os direitos de uma patente de motor a gasolina de dois tempos originalmente registrada por George B. Selden. Ao controlar essa patente, eles conseguiram monopolizar a indústria e forçar os fabricantes de automóveis a cumprirem suas exigências ou se arriscarem em um processo judicial.
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Em 1911, o fabricante de automóveis independente Henry Ford ganhou um desafio à patente do Selden. O resultado foi que esta patente tornou-se virtualmente sem valor e uma nova associação (que viria a se tornar a Motor Vehicle Manufacturers Association) foi formada, instituindo um acordo de licenciamento cruzado entre todos os fabricantes de automóveis dos EUA: embora cada empresa desenvolvesse tecnologia e registrasse patentes, essas patentes eram compartilhadas abertamente e sem a troca de dinheiro entre todos os fabricantes.
Na época em que os EUA entraram na 2ª Guerra Mundial, 92 patentes da Ford e 515 patentes de outras empresas estavam sendo compartilhadas entre esses fabricantes, sem qualquer troca de dinheiro (ou ações judiciais). E como vimos antes aqui na coluna #culturadigital, como resultado os EUA se tornaram ao longo de décadas os principais fornecedores mundiais do setor automobilístico, fazendo com que fabricantes de outros países repensassem seus processos de patente.
E, esta mesma tática está levando esta indústria a um novo patamar, agora via open-source para IA e códigos de auto-pilotagem, promovendo a tecnologia para uma nova era da mobilidade humana. Vem aí um mix de Uber com Google e PagVeloz.
ESTRUTURANDO A LIBERDADE
O termo “código aberto” foi criado em uma sessão de estratégia realizada em 3 de fevereiro de 1998 em Palo Alto, Califórnia, logo após o anúncio do lançamento do código-fonte do Netscape. Durante o evento, nascia a percepção em torno do anúncio da Netscape havia criado uma oportunidade para educar e defender a superioridade de um processo de desenvolvimento aberto.
Os participantes da sessão acreditavam que os fundamentos pragmáticos que motivaram a Netscape a liberar seu código ilustraram uma forma valiosa de se envolver com usuários e desenvolvedores de software em potencial e convencê-los a criar e melhorar o código-fonte participando de uma comunidade engajada. Neste momento pensaram que seria útil ter um único rótulo que identificasse essa abordagem e a distinguisse do rótulo de “software livre” com enfoque filosófico e político. O brainstorming para este novo rótulo eventualmente convergiu para o termo “código aberto”, originalmente sugerido por Christine Peterson.
A adoção do termo foi rápida, com o apoio inicial de figuras da comunidade, como Linus Torvalds, futuro criador do mais famoso software open-source, Linux. Formou-se também uma Cúpula do Software Livre em abril de 1998 com a participação de muitos indivíduos importantes, incluindo as os fundadores do sendmail, Perl, Python, Apache e representantes de o IETF e o Internet Software Consortium.
Nascia ali a Open Source Iniciative, entidade que atua diretamente nas comunidades de desenvolvedores e academia para promover iniciativas de código aberto pelo mundo.
DEMOCRATIZAÇÃO TECH
E estamos tão acostumados a utilizar softwares de código aberto que nem percebemos o quanto estes fazem parte da nossa vida. Onipresença do sistema Linux, que vai desde nossos smartphones (Android), SmartTVs, roteadores Wi-Fi e assistentes de voz, sem contar os milhares de componentes de software open source utilizados para a criação de apps, sites e, principalmente, a computação em nuvem e dispositivos IoT. O Linux se tornou tão essencial que possui uma comunidade global de desenvolvedores, promovendo inúmeras versões de códigos e compartilhando uma história que nunca para de ser escrita.
Porém o mais incrível do Open Source é o acesso que promove a tecnologia, onde milhares de jovens podem estudar em equipamentos e softwares de baixo custo, podendo esta ser uma das soluções para a escassez de mão de obra que nos atinge atualmente. Este movimento mundial para a distribuição de software livre, ao qual o Linux pertence, está assumindo a conotação de fenômeno, cuja ideia é acabar com o conceito de software proprietário e direitos intelectuais que há muito tempo dominam nossa cultura. O Linux e outros softwares gratuitos são os produtos de um grupo consistente de pessoas que publicaram e compartilharam o resultado de seu trabalho para que todos pudessem utilizá-lo livremente.
Previamente já vimos iniciativas assim em nossa sociedade, onde os desenvolvedores abriram mão de suas patentes para promover o desenvolvimento e qualidade de vida.
Utopia pensar nisso para tecnologia?
FUTURO ABERTO
Apoiado por todas as grandes companhias de software atualmente, como a IBM, o open source se tornou estratégico para o desenvolvimento econômico em todos clusters tecnológicos, visando tornar a competitividade mais horizontal entre parceiros e menos permeável a crises externas. Segundo especialistas, a visão de futuro para o open source se desenvolverá assim:
- Quanto maior a velocidade de desenvolvimento, maior a quantidade de código aberto.
- O código aberto terá que ser o meio reativo junto ao rápido desenvolvimento que ocorrerá no processamento de dados.
- Os aplicativos não mais serão reconhecidos como aplicativos, mas sim acesso instantâneo.
- Código aberto irá liderar o desenvolvimento da computação quântica.
- O software vai tornar-se mais importante que o hardware.
O Brasil já é referência mundial no desenvolvimento código aberto, tendo sediado importantes eventos do setor e uma comunidade ativa trabalhando nos projetos, como estes aqui. Segundo pesquisa da Evans Data Corporation, em 2024 o Brasil alcançará a 5ª posição como país com o maior número de desenvolvedores de software open source no mundo, nos colocando entre os grandes no desenvolvimento de código aberto.
PRÓLOGO
Aproveitando o hit do helicóptero em Marte o GitHub lança também uma nova seção de Conquistas no perfil de seus usuários, trazendo a luz personagens que até então ficavam literalmente no back-end de tudo. No momento, as conquistas incluem o patch da missão de helicóptero Mars 2020, o logo Arctic Code Vault e um emblema para patrocinar o trabalho de código aberto por meio dos patrocinadores do GitHub. E se quiser ler as histórias de como os desenvolvedores do Git Hub receberam estas novidades quando fizeram o Ingenuity decolar acesse aqui: Projeto ReadME.
Quem sabe com este reconhecimento mais desenvolvedores se interessem pelo código-aberto e possamos caminhar para a tecnologia digital mais acessível a todos, como imaginada pelos nossos primeiros idealizadores.
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