[CULTURA DIGITAL] Royalties e a crise da propriedade intelectual

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[CULTURA DIGITAL] Royalties e a crise da propriedade intelectual

Em tempos de “censura legal”, não será surpresa se ouvirmos rumores de que criações legítimas começam a desaparecer sem motivo aparente

Em tempos de “censura legal”, não será surpresa se começarmos a ouvir rumores de que criações legítimas começam a desaparecer sem motivo aparente. 


[04.11.2022]


Por Alexandre Adoglio, CMO na Sonica e Diretor no grupo Marketing&Vendas/ACATE Startups.
Escreve quinzenalmente sobre Cultura Digital para o SC Inova

Carol Highsmith, uma ilustre fotógrafa que, nos seus 76 anos, viajou por toda a América do Norte, sempre teve como objetivo registrar para a posteridade a vida da nação no início do século XXI. Produziu imagens icônicas em sua carreira, desde paisagens, rotina urbana, vida rural e também pessoas em seus ambientes. Após um longa vida de trabalho, com mais de 40 anos de fotografia e mais de 100.000 imagens produzidas, em 2002 ela decidiu doar toda sua produção para a Biblioteca do Congresso Americano, sem nenhuma taxa de royalty ou mesmo direito à propriedade intelectual, num acontecimento chamado na época de “um dos maiores atos de generosidade da história da Biblioteca”

Porém, em 2016 Carol Highsmith recebeu uma carta de cessação e desistência da Getty Images ameaçando levá-la ao tribunal se ela não retirasse uma fotografia que ela colocou em seu site. Isso soou muito estranho, porque ela mesma tirou a fotografia e a colocou em domínio público quando fez a doação para a Biblioteca do Congresso Americano. Após pesquisar um pouco, estarrecida descobriu que a Getty Images, ao que parece, o viu em seu ato de caridade uma forma de ganhar muito dinheiro, pois registraram os direitos autorais de 18.755 das fotografias de domínio público de Highsmith e começaram a enviar cartas de ameaça às pessoas por usá-las – incluindo a própria Highsmith. 

Highsmith, cheia de fúria, levou-os ao tribunal por US$ 1 bilhão. Mas a parte confusa dessa história é que ela não tem um final feliz, pois o tribunal decidiu a favor de Getty, dizendo que: “as obras de domínio público são regularmente comercializadas, e os autores originais não têm poder para impedir isso.” Em outras palavras, mesmo que a doação de Highsmith tenha dado a todos o direito legal de usar suas fotos de graça, isso não impediu Getty de ameaçar as pessoas a pagar-lhes dinheiro por elas, de qualquer maneira. 

(Eles ainda admitiram que a carta enviada a Highsmith foi um erro, mas no máximo se saíram com um tapinha nas mãos. A tristeza é que quem quiser pode sair exigindo que as pessoas paguem por coisas que são de domínio público, sem pedir autorização nenhuma. E na verdade ninguém precisa pagá-los, mas eles não têm obrigação de contar esse fato a ninguém).

Acontecimento que nestes tempos de economia criativa, Web 3.0 e afins, nos leva a repensar como tornar mais justo os atuais mecanismos de direitos autorais, que possam proteger os  criadores ao mesmo tempo que viabilizam os muitos projetos que estão acontecendo.

SER OU TER

A primeira lei de direitos autorais do mundo foi o Statute of Anne, promulgado na Inglaterra em 1710. Essa lei introduziu pela primeira vez o conceito de que o autor de uma obra é o proprietário de seus direitos autorais e estabeleceu termos fixos de proteção. Após esta lei, os trabalhos protegidos por direitos autorais foram obrigados a ser depositados em bibliotecas de direitos autorais específicas e registrados em orgão competente. Não havia proteção automática de direitos autorais para trabalhos inéditos como atualmente.

A legislação baseada no Estatuto de Anne apareceu gradualmente em outros países, como o Copyright Act de 1790 nos Estados Unidos, mas a legislação de direitos autorais permaneceu descoordenada em nível internacional até o século XIX. Em 1886, no entanto, a Convenção de Berna foi introduzida para fornecer o reconhecimento mútuo de direitos autorais entre os estados-nação e para promover o desenvolvimento de padrões internacionais para proteção.

A Convenção de Berna elimina a necessidade de registrar obras separadamente em cada país e foi adotada por quase todas as nações do mundo (mais de 140 dos cerca de 190 estados-nação do mundo). Após a adoção do tratado pelos Estados Unidos em 1988, a Convenção agora abrange quase todos os principais países, permanecendo em vigor até hoje e fornecendo a base para a lei internacional de direitos autorais.

Uma das maiores mudanças implementadas pela adoção da Convenção de Berna foi estender a proteção de direitos autorais a obras inéditas e remover a exigência de registro. Nos países filiados isso significa que um indivíduo (ou a organização para a qual está trabalhando) possui os direitos autorais de qualquer trabalho que produza assim que for registrado de alguma forma, seja escrevendo, desenhando, filmando etc.

Embora a adoção da Convenção de Berna tenha trazido muitos benefícios para os criadores de obras originais, os sistemas de proteção de obras inéditas permanecem fragmentados internacionalmente, com algumas regiões oferecendo serviços opcionais de registro dentro de sua própria jurisdição, enquanto outros não oferecem nenhum tipo de registro. Sem formalização pode ser difícil julgar quem é o legítimo proprietário de uma obra protegida por direitos autorais. Os sistemas nacionais de registro podem não estar dispostos a oferecer suporte em uma disputa em outro país. No Brasil o orgão responsável pelo registro de propriedade intelectual é o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) que tem por finalidade principal proteger patentes segundo a Lei 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial), e também  amparados pela Lei no 9.610/98, destinada a regular direitos autorais e o que lhe são conexos.

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Com este registro de propriedade intelectual apoia-se na legislação para proteger obras advindas da capacidade intelectual e criadora de pessoas físicas ou jurídicas, o que inclui:

  • Marcas e patentes;
  • Invenções em geral;
  • Descobertas científicas;
  • Obras literárias;
  • Obras artísticas;
  • Desenhos, modelos e projetos industriais.

Mas, sendo a internet uma terra de ninguém desde sempre, a propriedade intelectual sofre alguns reveses para ser aceita, obedecida e creditada em muitos posts, imagens e copys por aí.

MEU OU SEU?

Dos muitos casos de conflitos que surgem, alguns já são viram clássicos nos anais da cultura digital. Em 2015, um membro de um grupo de fãs de Star Wars no Facebook comprou uma figura de ação da personagem Rey no Walmart, tirou uma foto e colocou no site. E, para sua surpresa, quase todo o grupo do Facebook foi processado. 

A figura de ação que ele comprou, ao que parece, não deveria estar à venda até o dia seguinte e a Disney não queria que ninguém soubesse como era até o lançamento. Eles apresentaram uma queixa acusando-os de vazar um produto inédito, salvando assim o mundo dos horrores de descobrir como é um brinquedo infantil um pouco antes da data de lançamento programada. 

Mesmo com o Walmart assumindo o erro por ter colocado o produto para venda antecipada, e os advogados do grupo tendo a certeza que a Disney não podia processá-los pelo acontecido, o casal que dirigia o grupo de fãs, porém, adotou uma abordagem diplomática e educadamente pediu à Disney permissão para colocar a imagem de volta. A Disney escreveu de volta dizendo que tudo ficaria bem, e eles colocaram a foto de volta com permissão, dizendo a seus seguidores que isso apenas mostrava que “vale a pena seguir o caminho certo”. enviou outro aviso de remoção da DMCA, fez com que o Facebook removesse a postagem e baniu o homem que fez o upload do Facebook por três dias. 

Em outro caso sórdido, um usuário do YouTube recebeu uma carta do site de vídeos em 2015, informando que um de seus uploads estava sendo removido. A EMI Music apresentou uma queixa formal contra ele por plagiar uma de suas músicas – o que deve ter sido uma música estranha porque o vídeo era apenas um clipe de uma hora de duração do seu gato ronronando, enviado há mais de um ano para o site. Não está totalmente claro por que os algoritmos da EMI Music ou do YouTube se convenceram de que um gato ronronando soava como o hit de dança do verão, mas eles estavam confiantes o suficiente para retirar o vídeo de seu site e desmonetizar todo o canal, tendo um grande impacto para seu proprietário pois ele não poderia mais ganhar dinheiro com o upload de vídeos do YouTube – o que, por mais difícil que seja para nós com mais de 30 anos de idade, é uma maneira legítima de as pessoas ganharem dinheiro hoje em dia. 

O caso foi resolvido muito bem assim que chegou ao noticiário, mas ele não é a única pessoa a ter problemas legais por causa de ruídos de animais. Outro usuário do YouTube recebeu uma reivindicação de direitos autorais da gravadora Rumblefish porque o canto de um pássaro no fundo de seu vídeo parecia um pouco demais com uma das músicas da gravadora.

E, nestes tempos que enfrentamos de “censura legal” em alguns países da América Latina não será surpresa se começarmos a ouvir rumores de que criações legítimas começarem a desaparecer sem motivo aparente.

#RighClickSaveAs

E é neste novo e promissor mercado da Web 3.0 que temos a nova fronteira da propriedade intelectual surgindo, onde os verdadeiros donos das criações podem obter receita direta automática do seu trabalho, não só pela venda em si mas também pelo uso das obras para sempre. Ou não.

Com advento dos smart contracts da rede Ethereum e seus tokens gerados para uma infinidade de aplicações nos últimos anos, um horizonte se abriu para aqueles que desejam focar seus esforços na Economia Criativa, seja desenvolvendo ilustrações, animações, sons e textos. Tendo tido um aquecimento vertiginoso em 2021, o mercado de NFTs (tokens não fungíveis) vem sofrendo baixas constantes, o que na leitura de muitos é benéfico pois estaria “limpando o setor”. Desde o grande hype causado pelo artista Beeple Crap e sua coleção de NFTs vendida por U$ 69M na Christie´s, até o Neymar e seu Bored Ape de R$ 6M, muitos artistas se viram na possibilidade de entrar no mercado e se desenvolverem gerando obras similares.

Porém a falta de entendimento real do potencial de um NFT, que possui propriedades muito além dos colecionáveis, e o impacto do Bear Market (este devorador de rendimentos), causaram um certo desalento em todo ecossistema. Com a baixa nos valores dos assets muitos marketplaces de venda dos NFTs, como OpenSea e X2Y2, começaram a reduzir os valores dos royalties aos criativos, em alguns casos até zerando, sob argumento de que a venda inicial deveria cobrir todos os custos, inclusive da propriedade intelectual.

Reféns que estão nestas plataformas, por enquanto os criativos se vêem sem saída para gerar negócios mais rentáveis, seja por desconhecimento técnico ou falta de mecanismos que permitam uma geração de demanda maior para seus negócios. Um mercado com alto potencial de crescimento, mas que precisa se auto-regulamentar, principalmente nas questões básicas da Web 3.0: Descentralização, Anonimato e Custódia, sendo este último o fomento básico para geração de assets desejáveis e operacionais que permitam a saúde econômica de todos envolvidos.

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