Este artigo é uma análise prática em relação aos desafios do mundo real, além dos aspectos legais, para ‘tirar do papel’ as iniciativas previstas neste mecanismo. / Foto: Annie Spratt (Unsplash)
[30.08.2022]
Por Marcus Rocha, Conselheiro e Especialista em Ecossistemas e Habitats de Inovação.
Escreve quinzenalmente sobre o tema no SC Inova.
De antemão, é necessário fazer um disclaimer sobre o presente artigo, destacando que não se trata de um texto jurídico sobre o Marco Legal das Startups, Lei Complementar Federal 182 de 1º de Junho de 2021. Trata-se de uma análise de cunho prático, em relação aos desafios do mundo real, além dos aspectos puramente legais, para ‘tirar do papel’ as iniciativas previstas neste importante mecanismo para o desenvolvimento do empreendedorismo inovador. Afinal de contas, o Brasil é um país onde existem Leis que ‘pegam’, e Leis que ‘não pegam’.
Então, sob essa ótica prática, nota-se que alguns dos instrumentos estabelecidos pelo Marco Legal das Startups ainda estão longe de funcionar adequadamente. Os motivos são os mais diversos e a intenção aqui não é discutir todos eles. Mas busca-se fazer provocações para que lideranças dos ecossistemas de inovação possam, quem sabe, criar movimentos para mudar essa situação, pois muitas vezes as mudanças precisam acontecer localmente, para depois serem escaladas regional e nacionalmente.
Este artigo será desenvolvimento em três partes, cada uma para levantar questões importantes que ainda não estão devidamente esclarecidas:
Questão 1: A definição de Startup: Será mesmo um tipo de empresa?
Questão 2: O Sandbox Regulatório: Como proporcionar capilaridade para que inovações tenham autorização e acompanhamento regulatório experimental, em todo o país?
Questão 3: O Contrato Público para Solução Inovadora: Como destravar e dar segurança para a compra de inovações por parte de todas as esferas e poderes do Governo?
Questão 1: A definição de Startup – será mesmo um tipo de empresa?
Quem participou de alguns workshops para o desenvolvimento do texto inicial do Projeto de Lei percebeu a dificuldade em expressar a tipificação de uma Startup na redação de uma lei. Inclusive, em um dos encontros realizados em São Paulo, o debate foi bastante acalorado, com várias vozes bastante alteradas – quem esteve lá deve se recordar.
Vale aqui relembrar a definição trazida no primeiro artigo escrito para esta coluna, unindo definições propostas por três referências importantes: Eric Ries (A Startup Enxuta, 2012), ABStartups e StartSe, indicando que Startup é um novo empreendimento desenvolvido em um cenário de incertezas, pois visa a criação de um produto ou serviço com carga significativa de inovação e com um modelo de negócios que permita um rápido crescimento, em larga escala.
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A partir dessa definição, nota-se que Startup é muito mais uma estratégia de negócios do que necessariamente um tipo de empresa. Além disso, Startups podem ser criadas dentro de empresas existentes há algum tempo, e também não há um Código Nacional de Atividade Econômica (CNAE) para categorizar uma ‘empresa Startup’. Ou seja, há um mundo de subjetividades que pode inviabilizar a delimitação de um público-alvo, o que é fundamental para uma política pública e para várias outras ações dos ecossistemas de inovação.
Para tentar resolver essa questão, o Marco Legal das Startups, no seu Art. 4º, considerou Startups aquelas “organizações empresariais ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados“. Com isso não era suficientemente claro e objetivo, o texto também estabeleceu outros limites:
- Podem ser enquadrados como Startup “o empresário individual, a empresa individual de responsabilidade limitada, as sociedades empresárias, as sociedades cooperativas e as sociedades simples” (§ 1º do Art. 4º);
- Receita bruta de até R$ 16.000.000,00 (dezesseis milhões de reais) no ano-calendário anterior (inciso I do § 1º do Art. 4º);
- Até 10 (dez) anos de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) (inciso II do § 1º do Art. 4º);
- E que atenda a pelo menos um desses requisitos:
- Autodeclaração em seu Contrato Social (ou documento equivalente) de que utiliza de modelos de negócios inovadores para a geração de produtos ou serviços (item “a” do inciso III do § 1º do Art. 4º);
- Enquadramento no regime especial Inova Simples (item “b” do inciso III do § 1º do Art. 4º).
Percebe-se claramente uma opção, no texto da lei, pelo apoio a empresas jovens e de pequeno porte, que se autodeclaram inovadoras. Ao comparar a redação do Marco Legal com a definição de Startup, nota-se também uma distância muito grande entre conceito e legislação.
Ao consultar estudos sobre o panorama de Startups, no Brasil e no mundo, nota-se também uma disparidade grande entre os resultados. E o problema pode estar exatamente no modelo conceitual central utilizado, já que Startup claramente não é um tipo de empresa e, portanto, é algo muito difícil de tipificar e categorizar. Com isso, não se tem a clareza necessária sobre o público-alvo, dificultando uma série de ações, em diferentes esferas – associativista, investimentos, políticas públicas, etc.
E SE RETIRARMOS A PALAVRA STARTUPS DO MARCO LEGAL?
Considerando a inegável importância do empreendedorismo inovador para o desenvolvimento econômico do Brasil, talvez seja necessário tomar uma decisão difícil – e polêmica – e tirar a palavra ‘startup’ de cena. No caso específico dos objetivos e do recorte dado na Lei Complementar 182/2021, quem sabe seria melhor modificar o seu título para ‘Marco Legal para o Incentivo ao Empreendedorismo Inovador para Micro e Pequenas Empresas de Base Tecnológica’, ou algo similar. O título da lei certamente não seria tão ‘sexy’ para o mercado, mas poderia resolver várias dúvidas na sua interpretação e posterior aplicação, algo muito mais importante e relevante.
Como talvez essa mudança não seja factível, para reduzir a imprecisão dos atuais estudos sobre Startups à luz do atual Marco Legal, poderiam ser realizadas algumas ações práticas para pelo menos melhorar a situação atual, que poderia estar sob a coordenação do Ministério da Economia ou do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (ou até mesmo de ambos):
- Unificar as bases de dados das Juntas Comerciais e outros órgãos que registram contratos sociais e instrumentos constitutivos de pessoas jurídicas, de todo o país, para identificar aquelas empresas, sociedades empresárias, as sociedades cooperativas e as sociedades simples que se autodeclararam Startups;
- Somar essa base unificada descrita no item anterior, com as informações da Receita Federal, para identificar os demais critérios da Lei Complementar 182/2021, principalmente o limite de existência (até 10 anos) e o faturamento anual (até R$ 16 milhões);
- Opcionalmente, atualizar a tabela de CNAEs com a criação ou caracterização de atividades que sejam inovadoras, facilitando a identificação das startups, e editando documento normativo do Poder Executivo Federal conectando esses CNAEs com os critérios da Lei Complementar 182/2021.
Para boa parte do público que está lendo este artigo, essa discussão quase que conceitual pode parecer sem sentido, porque o mais importante é a criação de um bom ambiente para que os empreendimentos inovadores, startups ou não, prosperem. No entanto, considerando os riscos inerentes à criação de empreendimentos inovadores, somados aos riscos naturais das empresas de micro e pequeno porte, é fundamental saber com precisão quem faz parte desse público-alvo, para então fazer contato e entender suas necessidades, dilemas, e oportunidades para a criação de iniciativas públicas e privadas para maximizar o sucesso desses empreendimentos. Para isso, é imprescindível ter maior precisão sobre o entendimento do objeto central que está sendo atendido.
A partir do sucesso dos ecossistemas que acertaram nas ações de incentivo e suporte à criação de empresas inovadoras, que passaram a viver ciclos positivos e longos de desenvolvimento sustentável, outras localidades perceberam que é necessário investir tempo, conexões e recursos nesse tema. Assim, esse tipo de discussão deve ser feita de forma permanente, mas desde que a melhoria do entendimento sobre os conceitos se reflita em ações concretas e objetivas.
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