Edtech catarinense WeCann fatura R$ 1 milhão capacitando médicos para tratamentos com endocanabinóides

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Edtech catarinense WeCann fatura R$ 1 milhão capacitando médicos para tratamentos com endocanabinóides

Criada há dois anos em Florianópolis pela neurocirurgiã Patricia Montagner (foto), startup criou um centro de educação e formação sobre o uso de medicamentos à base de maconha.

Criada há dois anos em Florianópolis pela neurocirurgiã Patricia Montagner (foto), startup criou um centro de educação e formação sobre o uso de medicamentos à base de maconha. / Foto: Divulgação


[FLORIANÓPOLIS, 23.05.2022]
Por
Lúcio Lambranho, especial para a Agência SC Inova 

O drama de um colega médico, que procurou ajuda quando estava com câncer de pulmão em estágio avançado, mas não tinha em sua cidade quem pudesse prescrever medicamentos à base de cannabis, despertou a vontade da neurocirurgiã Patricia Montagner para empreender na área de educação. 

Capacitar outros médicos para prescreverem com segurança medicamentos tendo o princípio ativo da maconha como base, foi mais um estágio da sua prática, iniciada ainda em 2015 depois da sua formação em neurocirurgia. Desde então enfrentava o preconceito e a resistência sobre o uso da planta, na busca de novas terapias que pudessem trazer melhores resultados e qualidade de vida aos seus pacientes. Foi com base nessa experiência acumulada que a médica criou em 2020 a WeCann Academy, comunidade voltada para educação da medicina endocanabinoide.

Dois anos depois, a edtech de Florianópolis anunciou um faturamento R$ 1 milhão, resultado impulsionado pelo avanço de pesquisas e uso da cannabis medicinal no Brasil e no mundo. Nas contas da empresa, 2022 deve encerrar com número cinco vezes maior de médicos capacitados. A busca dos profissionais por conhecimento mais aprofundado fez com que a plataforma alcançasse um aumento de 400% no número de alunos em 2021. 

A instituição desenvolveu uma metodologia baseada em social learning e a comunidade digital conta com mais de 700 profissionais que trocam ideias na plataforma sobre aplicações terapêuticas e casos de sucesso. Desde a sua fundação, a WeCann Academy formou alunos não apenas no Brasil, mas também nos Estados Unidos, América Latina e Europa e grupos da Ásia e Oceania já demonstram interesse pela capacitação. 

Nos seus planos de expansão, a empresa apresenta dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre o credenciamento de médicos neste tipo de terapia. Segundo a agência reguladora, o Brasil possui atualmente 2.100 prescritores, o que representa apenas 0,42% de médicos atuantes no país.

CONTEÚDO TÉCNICO SEM INTERFERÊNCIA COMERCIAL 

O diferencial do negócio, segundo Patricia, é manter o conteúdo e capacitação com certificação internacional longe da interferência comercial de empresas produtoras de medicamentos. Os números sobre este mercado dão uma dimensão da disputa em marcha acelerada no cenário nacional. De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a expectativa é que as empresas do setor mais do que dobrem o faturamento em 2022, chegando a R$ 500 milhões, com pelo menos 15 novos produtos em análise pela agência. 

No Brasil, uma análise realizada pela Kaya Mind, empresa de inteligência de mercado de cannabis, prevê movimentação de R$ 26,1 bilhões até 2025 com o avanço da regulamentação no país. O Projeto de lei 399/2015 (marco regulatório da cannabis no país) está em tramitação na Câmara dos Deputados e prevê o cultivo legal em território nacional para fins medicinais, veterinários, industriais e científicos.

“Quando decidi me aprofundar tecnicamente no tema, fiz vários cursos dentro e fora do país. A quase totalidade era patrocinada por empresas de produtos à base de cannabis. O viés na entrega do conhecimento é gritante. O braço de educação das empresas se tornou apenas um meio para atrair mais médicos para os seus produtos. Foi bastante desafiador começar do zero e com 100% de recursos próprios, mas a decisão de criar e manter nossa comunidade de ensino sem interferência ou viés comercial de fornecedores de produtos de cannabis foi a mais acertada de todas. É um dos nossos maiores diferenciais”, explica a CEO. 

Nesta entrevista exclusiva ao SC Inova (leia abaixo), Patricia dá detalhes de como a empresa superou os desafios de empreender nesta área. A neurocirurgiã também abre o debate sobre o tema ainda carregado, segundo a ela, de preconceitos e que tem muito para avançar na comunidade científica e médica no Brasil.

SC INOVA – Como surgiu a ideia de criar a WeCann Academy?

PATRICIA MONTAGNER – Assim que terminei a formação em Neurocirurgia em 2015, comecei a atuar em minha clínica privada e me deparei com diversos pacientes portadores de dor crônica, problemas crônicos da coluna vertebral e transtornos neurológicos diversos. Em muitos casos, senti-me bastante insatisfeita com o arsenal terapêutico que havia aprendido, principalmente por observar resultados pouco satisfatórios na evolução desses casos.

Foi então que fui em busca de outras ferramentas terapêuticas que pudessem trazer melhores resultados e melhor qualidade de vida para os meus pacientes. Queria ajudar os pacientes que já haviam operado, mas não melhorado, e também ajudar os pacientes que não tinham indicação de cirurgia, mas não encontravam alívio do seu sofrimento com as terapêuticas habituais. Foi assim que a cannabis medicinal entrou na minha vida profissional. E foi um verdadeiro divisor de águas na minha carreira. São centenas e centenas de pacientes que tiveram suas vidas literalmente transformadas por essa medicação.

Meu consultório encheu rapidamente, pessoas de várias partes do país e com diferentes patologias me procuravam porque eu havia me tornado uma prescritora experiente de cannabis. O dia em que um colega médico que estava com câncer de pulmão em estágio avançado veio de outra cidade para se consultar comigo, porque na cidade dele não havia nenhum médico que orientasse como usar medicamento à base de cannabis, ficou claro para mim a necessidade da comunidade médica em acessar informações tecnicamente qualificadas sobre o tema.

Senti vontade de transbordar os conhecimentos que tinha e multiplicar os excelentes resultados que estava colhendo na minha prática. O caminho para alcançar esse propósito era empreender na educação médica e capacitar outros colegas para prescreverem cannabis medicinal com segurança e eficácia. Assim surgiu a WeCann Academy.

“[O canabidiol] foi um verdadeiro divisor de águas na minha carreira. São centenas de pacientes que tiveram suas vidas literalmente transformadas por essa medicação”, comenta a neurocirurgiã.

SC INOVA – Quais foram as principais dificuldades enfrentadas no começo da operação e quais são os desafios para acompanhar o aumento previsto na base de alunos?

PATRICIA MONTAGNER – Encontramos uma série de desafios operacionais e de mercado, mas eu destacaria que a confusão com a discussão sobre os diferentes usos da cannabis, aliado ao legado de preconceito que essa planta carrega, é o principal. Hoje temos na pauta o uso medicinal, recreativo e industrial. As aplicações são completamente diferentes, seja na quimiovariante da planta que é utilizada, no cultivo, no controle de qualidade, na produção ou na distribuição. 

Quando o médico acessa a base de evidências científicas sobre o sistema endocanabinoide e a sua modulação, ele entende rapidamente que está diante de uma nova fronteira da medicina. O problema é que existe muito ruído nessa informação, muitas vezes, com viés político ou mesmo ativista, e a comunidade médica se afasta, pois o assunto deixa de ser técnico e, principalmente, deixa de visar o resultado com o paciente.

Mas, mesmo com esse desafio, estamos alcançando excelentes resultados. Nossa base de médicos no Brasil está crescendo rapidamente com médicos de várias partes do país e, também, de outros países como Uruguai, Equador, México, EUA, Portugal e Nova Zelândia, nos tornando a maior escola de educação em Medicina Endocanabinoide da América Latina.

SC INOVA – Como foram criadas as formas de investimento ou de participação de investidores no projeto até agora? Estão previstas rodadas ou novas rodadas de captação de novos investidores em 2022?

PATRÍCIA MONTAGNER – A operação só recebeu investimentos dos founders até o momento, nosso cap table é limpo. Alcançamos um bom nível de maturidade com a nossa entrega, atingimos o PMF (Product Market Fit) e agora estamos considerando fazer uma rodada para acelerar o crescimento no Brasil e em outros mercados.

SC INOVA – Como a senhora avalia qualidade técnica e científica do debate sobre o uso da cannabis medicinal no Brasil? Por que ainda existe resistência ao tema no Brasil? A resistência está fixada na sua opinião em quais setores?  

PATRÍCIA MONTAGNER – Já avançamos bastante nas discussões técnico-científicas sobre o uso medicinal da cannabis no Brasil. Um marco importante foi a regulamentação 327/19 da ANVISA acerca dos requerimentos para comercialização de produtos à base de cannabis no nosso país. Nosso órgão regulatório federal entendeu que esses produtos devem ser entendidos como medicamentos e, portanto, devem alcançar critérios de qualidade mínimos para serem utilizados para fins medicinais. 

Mas ainda há muito que amadurecer. O próprio CFM (Conselho Federal de Medicina) está bastante obsoleto no tema. A última vez que se posicionou sobre a questão foi em 2014, através de uma resolução na qual orienta que “apenas médicos neurologistas, neurocirurgiões e psiquiatras devem prescrever canabidiol para crianças e adolescentes portadores de epilepsias graves e refratárias”. 

A resolução limita que outros médicos possam utilizar essa ferramenta terapêutica, ignora as outras centenas de elementos químicos da planta que podem ser usadas para fins medicinais, além do canabidiol, e impede que um adulto portador de epilepsia grave e refratária ou qualquer outro paciente portador de outra patologia possa se beneficiar dessa ferramenta terapêutica.

Nos últimos oito anos, a ciência avançou de forma exponencial na área. Ao contrário dos 80 derivados canabinoides referidos na resolução do CFM de 2014, já são mais de 150 fitocanabinoides desvendados pelas pesquisas científicas e, ao todo, mais de 550 elementos químicos presentes nessa planta com potencial terapêutico. Qualquer pesquisa rápida no Google relacionada à cannabis medicinal e ao Sistema Endocanabinoide, sistema fisiológico ao qual os elementos dessa planta atuam, renderá milhares de artigos científicos. 

A resistência a toda essa ciência está principalmente fixada na confusão que a maioria das pessoas e, em especial, a própria comunidade médica e autoridades públicas fazem entre o uso medicinal e o uso recreacional dessa planta. A falta de informação técnica qualificada sobre o tema perpetua preconceitos e estigmas relacionados à planta e impede o amplo e democrático acesso aos medicamentos à base de cannabis por milhões de brasileiros portadores de doenças graves, refratárias e incapacitantes.

Até ser aprovado pela comissão especial em junho de 2021, o PL 399/2015 ficou parado na Câmara por cinco anos. Atualmente aguarda deliberação de um recurso na mesa Câmara contra essa aprovação desde novembro do ano passado antes de seguir para o Senado como já deveria ter sido o caminho natural do projeto. 

A resistência a toda essa ciência está na confusão, que a própria comunidade médica e autoridades públicas fazem, entre o uso medicinal e o uso recreacional da planta.

SC INOVA – Como a empresa avalia as possibilidades do avanço deste projeto diante do atual cenário político brasileiro e qual seria o impacto da aprovação do texto no modelo de negócio da plataforma?  

PATRICIA MONTAGNER – A aprovação do PL 399/2015 é um caminho sem volta, pois não versa sobre o espinhoso e controverso tema do uso recreacional da cannabis. Por isso, independentemente da ideologia política do próximo governo, seja de esquerda, de direita ou “do alto”, a aprovação da exploração medicinal e industrial dessa planta em território nacional vai acontecer, simplesmente porque tem a projeção real de movimentar bilhões de reais em nossa economia. 

Segundo dados coletados e calculados pela Kaya Mind, empresa de inteligência de dados voltados ao mercado da cannabis, só a produção de CBD (Canabidiol) no Brasil e dos outros fitocanabinoides da cannabis para fins medicinais pode movimentar R$ 9,5 bilhões no 4º ano após a implementação da lei, e o cultivo de cânhamo para fins industriais teria um potencial produtivo de 15 mil hectares.

O impacto desses números no mercado de trabalho e no mercado financeiro do país e os milhares de pacientes que podem ser beneficiados por essa terapêutica não permitem procrastinar mais a sua aprovação. O impacto da aprovação do PL em nosso modelo de negócio será extremamente positivo, aumentará de forma rápida a visibilidade da cannabis como ferramenta terapêutica, estimulando a procura por informações técnicas qualificadas sobre o tema.

SC INOVA – Como a plataforma tem se posicionado para manter e expandir sua comunidade de ensino e aumento de novos alunos “sem interferência ou viés comercial de fornecedores de produtos e medicamentos”?

PATRICIA MONTAGNER  – Quando decidi me aprofundar tecnicamente no tema, fiz vários cursos dentro e fora do país. A quase totalidade era patrocinada por empresas de produtos à base de cannabis. O viés na entrega do conhecimento é gritante. O braço de educação das empresas se tornou apenas um meio para atrair mais médicos para os seus produtos.

Foi bastante desafiador começar do zero e com 100% de recursos próprios, mas a decisão de criar e manter nossa comunidade de ensino sem interferência ou viés comercial de fornecedores de produtos de cannabis foi a mais acertada de todas. É um dos maiores diferenciais da WeCann.

Nossos experts têm total liberdade para falar de qualquer produto à base de cannabis, registrados, importados ou artesanais. O propósito da WeCann é formar médicos verdadeiramente conscientes de suas escolhas e oferecer toda a base necessária para a formação de um pensamento crítico, autônomo e independente. Oferecer o conhecimento técnico necessário para que possam prescrever a formulação mais apropriada para cada paciente. Esse nosso posicionamento nos diferencia muito da concorrência e tem sido um dos principais motivos pelos quais os médicos procuram a nossa certificação.

Segundo a fundadora, o propósito da empresa é “formar médicos conscientes de suas escolhas com a base necessária para um pensamento crítico, autônomo e independente”. / Foto: Elsa Olofsson (Unsplash)

SC INOVA – Além dos cursos de capacitação, a WeCann Academy tem projetos para se expandir em outras áreas que envolvam a pesquisa e a produção de medicamentos?

PATRICIA MONTAGNER  – A produção de medicamentos não, mas daremos nossa contribuição para as pesquisas. A WeCann se posiciona como a melhor opção para o médico na jornada de aprendizado e aplicação prática da Medicina Endocanabinoide e temos projetos para fortalecer essa experiência.

SC INOVA – A senhora acredita que a liberação do plantio pelas famílias dos pacientes podem ser alternativas para ampliar o acesso a este tipo de medicamento, considerado ainda muito caro para a maioria da população brasileira?

PATRICIA MONTAGNER  – O habeas corpus individual não é um caminho sustentável para democratizar o acesso aos medicamentos à base de cannabis. A maioria das pessoas não faz a menor ideia do quão desafiador é o plantio e extração artesanal desses produtos. O investimento em infraestrutura é elevado e os gastos mensais para manutenção da estrutura também. Qualquer infestação por fungos (algo comum nesse plantio) pode comprometer toda uma floração (que ocorre em média a cada 3-4 meses).

Uma criança portadora de epilepsia grave não pode correr o risco de ficar sem medicação porque o cultivo foi comprometido por uma infestação por fungos ou ter escapes convulsivos porque a floração não foi suficiente para alcançar as concentrações de canabinoides necessárias para o seu tratamento.

Por isso, defendo o habeas corpus coletivo, de associações de pacientes compostas por colaboradores devidamente capacitados e preparados para o cultivo dessa planta. Ainda, defendo que essas associações sigam um manual de boas práticas no cultivo e extração desses produtos para que garantam um tratamento minimamente qualificado aos pacientes. No entanto, com o desenvolvimento do mercado, a tendência é que o custo dos produtos com qualidade farmacêutica caia e se torne uma opção viável e acessível para a maior parte da população brasileira.