Agora, filmes entram simultaneamente nos canais on demand, plataformas online e nos cinemas. É o início de uma nova relação digital com a cultura – e uma evolução do modelo de locadoras que teve seu auge há algumas décadas.
[11.12.2020]
Por Alexandre Adoglio*
Com o recém anúncio da Warner Bros de lançar ao mesmo tempo suas estréias de filmes tanto nos cinemas quanto na plataforma HBO+, o mercado entrou em forte atrito entre produtores, diretores e quem manda nos estúdios. Filmes como Duna, Wonder Woman 1984 e Tom & Jerry poderão ser acessados ao gosto do freguês, tanto num cinema perto de casa como no sofá, no mesmo dia. Christopher Nolan, diretor aclamado por filmes como Dunkirk e Inception, se mostrou incrédulo, naquilo que chamou como tremendo desrespeito a toda cadeia de produção cinematográfica, pois fica clara a estratégia da plataforma em atrair o maior número de assinantes possível através do seus maiores títulos da temporada 2021.
Lá nos anos 1990 um dos melhores momentos da semana era a busca pelas prateleiras nas locadoras de vídeo/DVD do bairro, quando cinéfilos como eu se acotovelavam às quintas-feiras para conseguir o último lançamento daquele diretor ou estúdio, que já havíamos assistido no cinema porém demoraria alguns anos para ser transmitido pela TV.
Marco de uma geração, o ritual de alugar o filme e depois devolvê-lo impactou a forma de consumo do entretenimento, se tornando um canal de distribuição para os estúdios bem mais forte do que os tradicionais cinemas. O produto “filme”, que movia multidões até aqueles ambientes sofisticados e aos shoppings mais tarde, se mostrava propenso a gerar um ecossistema próprio de rentabilidade em que toda a força dos produtores se canalizava para derivados em VHS, DVDs e Blu-rays, sem contar uma infinidade de produtos licenciados.
Fato é que estes rituais offline foram perdendo força com o avanço tecnológico, que não só entrega melhor e mais rápido como cria novos hábitos em todos nós.
NETFLIX AND CHILL
Quando falamos de disrupção o Netflix logo desponta como um case amado pelos palestrantes de plantão. História já bem dissecada, muito mais do que aposta na tecnologia a empresa é fruto do prolífico ecossistema de startups da Califórnia, fundada em 1997 como serviço de delivery dos DVDs por dois empreendedores em série, Marc Randolph and Reed Hastings. Os usuários escolhiam seus filmes em uma revista ou pelo site, solicitavam o filme por US$ 4 e pagavam mais US$ 2 pela postagem, podendo ficar com ele o tempo que quisessem, porém só poderiam alugar um novo quando o devolvessem.
Contaminados pelo pensamento lean, que brotava no empreendedorismo tecnológico do Vale do Silício, os fundadores buscavam novas formas de crescer, batendo na porta da gigante de locação DVD Blockbuster, visando algum tipo de sinergia. Ignorados nesta intenção, levaram o seu negócio a novos patamares, sempre desafiando o modelo de pensar e apostando nas tecnologias que os fundadores tinham impregnadas em seus DNAs: Reed Hastings, doutor em Inteligência Artificial pela Universidade de Stanford e Marc Randolph, fundador de outras startups de sucesso como Macworld, além de mentor de empreendedores.
Muito mais do que o aspecto tecnológico e desenvolvimento de novos negócios, como produções próprias de filmes e seriados, o que caracteriza a performance da Netflix é o mindset dos líderes no negócio, e principalmente a forma como gestão de pessoas é encarada pela companhia. Em seu livro, “Powerful, Building a Culture of Freedom and Resposibility” (Ed. Benvirá, 2020), a autora Patty McCord divide com o leitor sua experiência liderando a área de Recursos Humanos desde a fundação da gigante de streaming.
Segundo a abordagem da autora, os recursos humanos transformam-se numa nova filosofia geradora de produtividade, que surge associada ao objetivo de atribuir poder às pessoas, no caminho para a gestão delas próprias e das suas carreiras. Patty McCord participou na criação do documento “Netflix Culture Deck”, manifesto que foi já lido mais de 15 milhões de vezes desde que foi publicado.
Movimento que a autora determina como o contrário do “broculture”, que tanto permeia as empresas tech no mundo afora, incluindo aqui na nossa Ilha do Silício:
“If you want to build a ship, don’t drum up the people to gather wood, divide the work, and give orders. Instead, teach them to yearn for the vast and endless sea.”
“Se você quer construir um navio, não convide as pessoas para juntar lenha, dividir o trabalho e dar ordens. Em vez disso, ensine-os a ansiar pelo mar vasto e infinito.”
LEIA MAIS ARTIGOS EM NOSSO CANAL CULTURA DIGITAL
UMA VIDA DE ASSINATURAS
Com o avanço do mercado de streaming foi natural outros players descerem pro parquinho, como por exemplo a Disney com seu +plus, recém lançado no Brasil – e obtendo uma certa tração devido à forte inércia do seu conteúdo consagrado desde a era de ouro dos cinemas. Mesmo com um catálogo forte, o estúdio do Mickey optou por alavancar seu novo negócio através de produções próprias, versões live action das famosas animações longa-metragem e também surfando a onda gerada por The Mandalorian, spin-off de Star Wars, série que colecionava imensas críticas nos últimos filmes e agora obtêm um certa redenção com foco num bebê da mesma raça do Yoda.
Caminho já traçado pela Amazon com seu Prime, que disponibiliza ao assinante uma série de benefícios omnichannel acoplando livros e outros produtos ao serviço; o YouTube com seu Red/Premium que não decola de jeito nenhum; a Globoplay, que transita no público cativo da Rede Globo e adjacências; o Telecine Play com seu imenso catálogo de anos como TV por assinatura; Now e Vivo, com vendas por conteúdo; SPcine Play especializada em conteúdo brasileiro; Crunchyroll especializado em animes e dramas japoneses; PopcornFlix para quem curte um cinema independente; e o Crackle, que é o primo pobre da Netflix. Ainda temos outros focados em nichos como Kinopop, Looke, Darkflix, PlayPlus, Afroflix, Cinema Virtual, FilmeFilme e Pluto TV.
Resta saber se as recém críticas ao modelo streaming vão alterar tamanha oferta e possibilidades para todos nós que curtimos filmes e séries. Opções não faltam, acabando com as desculpas de quem prefere fazer aquele torrent safado que além de contaminar sua máquina com todo tipo de porcaria ainda gera uma perda anual de mais de $70 bi/ano, o que acaba onerando o preço para todos.
* ALEXANDRE ADOGLIO é CMO na Sonica e empreendedor digital.
Escreve semanalmente sobre Cultura Digital para o SC Inova.
SIGA NOSSAS REDES