[OPINIÃO] O mundo não é plano: é necessário entender a competição entre ecossistemas de inovação

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[OPINIÃO] O mundo não é plano: é necessário entender a competição entre ecossistemas de inovação

Epicentros da inovação global reforçam a necessidade de políticas territoriais ativas para reduzir desigualdades de competitividade

As grandes regiões tecnológicas (Boston, Shenzhen, Berlim, Seul e Tel Aviv) consolidaram-se como epicentros da inovação global, reforçando a necessidade de políticas territoriais ativas para reduzir desigualdades de competitividade. / Foto: Martin Sanchez (Unsplash)


[18.11.2025]
“Territórios que promovem a inovação passam a ter melhores indicadores de desenvolvimento econômico e social e tendem a atrair mais negócios e profissionais qualificados", argumenta o autor Marcus Rocha. / Foto: Caio Cezar (Divulgação)
Por Marcus Rocha, consultor para Habitats de Inovação e autor do livro “Territórios da Inovação” (editora SC Inova)

Os mercados contemporâneos vivem sob a lógica da aceleração. Globalização, transformações tecnológicas e de mercados ocorrem de forma simultânea e contínua, reconfigurando setores inteiros em ciclos cada vez mais curtos. Empresas de todos os portes e segmentos enfrentam a necessidade permanente de inovar para permanecerem competitivas. A inovação, antes diferencial estratégico, tornou-se requisito básico para a sobrevivência. 

Essa exigência também se impõe a instituições acadêmicas e organizações do terceiro setor, que precisam demonstrar impacto e relevância em um mundo orientado por resultados e por conhecimento. Até mesmo governos, antes menos expostos às pressões concorrenciais, agora competem por empresas, investimentos e talentos. Cidades, estados e países disputam não apenas fluxos financeiros, mas também capital humano e intelectual, capazes de gerar valor e sustentar trajetórias de desenvolvimento econômico e social – além da própria arrecadação tributária.

O MUNDO NÃO É TÃO PLANO QUANTO THOMAS FRIEDMAN SUGERE

Nesse ambiente, alguns territórios constroem vantagens significativas. Desenvolvem, atraem e retêm empresas altamente competitivas – e, portanto, inovadoras -, investimentos de alto impacto e pessoas qualificadas, criando um ciclo virtuoso de prosperidade. Esses territórios tornam-se pólos de atração, verdadeiros centros gravitacionais do desenvolvimento econômico e social. 

Foi justamente para explicar esse fenômeno que Richard Florida e Tim Gulden publicaram, em 2005, o artigo “The World is Spiky, argumentando que o mundo, longe de ser plano, tem picos de concentração de inovação, talento e riqueza. O título foi formulado em resposta às ideias do livro The World is Flat” (O Mundo é Plano), de Thomas L. Friedman, lançado no mesmo ano e que defendia que a globalização e as tecnologias de informação haviam nivelado o planeta, reduzindo barreiras e proporcionando oportunidades iguais para todos os territórios.

Ainda que partam de perspectivas distintas, as duas visões não se anulam; na verdade, elas se complementam. Friedman observou corretamente que a digitalização e a integração global democratizaram o acesso a mercados, conhecimento e tecnologia, permitindo que regiões antes periféricas participassem de cadeias globais de valor. Essa tendência “achatou” parte das desigualdades estruturais, criando novas possibilidades de crescimento em países emergentes e ampliando a difusão de conhecimento. 

Contudo, como destacaram Florida e Gulden, esse movimento global de nivelamento convive com uma tendência oposta: a concentração da capacidade inovadora em determinados territórios. Assim, enquanto o mundo se torna mais conectado e, em certo sentido, mais plano (“flat”, em inglês), ele também se torna mais desigual, formando picos de competitividade (“spikes”, em inglês) que se destacam sobre uma base global mais homogênea. 

Em síntese, o mundo é plano na média – e esta média tem aumentado -, mas tem picos quando se observa a distribuição da inovação e da riqueza, com altos níveis de concentração em poucos territórios.

A GEOGRAFIA DA INOVAÇÃO E OS NOVOS PÓLOS DE COMPETITIVIDADE

The World is Spiky” indica que são 4 dimensões que podem ser avaliadas para entender os motivos de formação e sustentação desses picos de desenvolvimento e competitividade: Inovação; Talentos; Atividade econômica; e Conectividade. Territórios com forte densidade de conhecimento, infraestrutura avançada e políticas de incentivo públicas e privadas bem estruturadas conseguem atrair e reter talentos, investimentos e empresas de alto desempenho. Em contrapartida, territórios que não desenvolvem essas condições enfrentam dificuldades crescentes para competir, mesmo em setores tradicionais. Duas décadas após a publicação do texto, o padrão permanece evidente: a globalização aumentou o número de participantes no jogo econômico, mas apenas alguns lugares conseguem escalar os picos da inovação e da competitividade global.

Em 2025, o cenário global é ainda mais concentrado. Dados da edição de 2025 do Global Innovation Index (Índice Global de Inovação) da World Intellectual Property Organization (WIPO, Organização Mundial de Propriedade Intelectual) mostram que cerca de 80% dos investimentos privados em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) continuam concentrados em apenas 10 países, e que as 100 cidades mais inovadoras do mundo respondem por mais de 70% das patentes registradas globalmente. Isso confirma a tese de Florida e Gulden: os picos tornaram-se mais altos e mais nítidos. As grandes regiões tecnológicas, tais como Boston, Shenzhen, Berlim, Seul e Tel Aviv, consolidaram-se como epicentros da inovação global, reforçando a necessidade de políticas territoriais ativas para reduzir desigualdades de competitividade.

NO BRASIL, EM VEZ DE PICOS, TEMOS VALES DE COMPETITIVIDADE

A dinâmica dos picos (pontos altos) e vales (pontos baixos) também é observada dentro das fronteiras nacionais. A economia brasileira tem enfrentado perda sistemática de competitividade. Segundo estudos de 2024 sobre o Panorama da Indústria, apresentados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), a participação da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro caiu de 27% em 1985 para cerca de 11% em 2024.

O setor de comércio e serviços também sofre com a competição internacional e com a digitalização acelerada. Os indicadores de desenvolvimento do Banco Mundial, e o panorama da economia apresentado pela OCDE indicam que o Brasil ocupa apenas a 62ª posição no ranking global de produtividade, perdendo terreno para outros países que adotaram políticas robustas pautadas na inovação e no desenvolvimento tecnológico para impulsionar a competitividade das vocações econômicas dos seus diferentes territórios.

Esses dados mostram que a falta de uma estratégia consistente de inovação resulta em vulnerabilidade econômica. Quando as empresas não inovam, perdem espaço competitivo; e quando isso ocorre em larga escala, o território como um todo se fragiliza. A inovação, portanto, deve ser vista não apenas como uma ferramenta de transformação empresarial, mas como uma política de desenvolvimento territorial.

INOVAÇÃO TERRITORIAL E VOCAÇÕES ECONÔMICAS

A política de inovação, em muitos casos, ainda é tratada no Brasil como uma agenda transversal e de responsabilidade exclusivamente da administração pública, deveria ser um eixo estruturante das estratégias de desenvolvimento econômico e social, envolvendo todos os setores da sociedade – ou pelo menos os atores da “quádrupla hélice”. Essas políticas também precisam ser “territorializadas”, construídas a partir das vocações econômicas e das bases de conhecimento de cada região, que se complementam para criar um tecido econômico compatível com o contexto econômico mundial atual.

As políticas de inovação deveriam ser um eixo estruturante das estratégias de desenvolvimento econômico e social dos países. / Foto: Markus Krisetya (Unsplash)

Um território com tradição agrícola, por exemplo, pode desenvolver competências em biotecnologia, automação e agricultura digital. Já regiões com cadeias metalmecânicas podem investir em manufatura avançada e digitalização industrial. A inovação, quando alinhada às vocações locais e com foco no empreendedorismo, tem maior chance de gerar impacto e sustentabilidade.

Nesse ponto, a metáfora dos picos adquire dimensão prática: os territórios que compreendem suas potencialidades, priorizam o empreendedorismo, e desenvolvem um senso coletivo para o desenvolvimento de políticas e estruturas de apoio à inovação, criam seus próprios picos de competitividade. Essa é a base da economia do conhecimento em escala local.

CLUSTERS: A FORÇA DA COOPERAÇÃO TERRITORIAL

O instrumento mais eficaz para transformar vocações em inovação concreta é o “Cluster de Negócios e Inovação”, um arranjo territorial que reúne empresas, universidades, centros de pesquisa e governos em torno de desafios e oportunidades compartilhadas. Ao contrário de ações isoladas, os clusters permitem foco, cooperação e especialização. Sua principal característica é que as empresas estabelecidas assumem papel de liderança, definindo prioridades e traduzindo as demandas de mercado em desafios tecnológicos. A governança do cluster é o elo entre o conhecimento científico e a aplicação econômica, criando um ambiente em que a inovação é gerada e disseminada de forma contínua.

Alguns exemplos internacionais ilustram esse modelo. Na Itália, os Distritos industriais da região da Emilia-Romagna são referência mundial em inovação colaborativa, especialmente nos setores de máquinas, automação e design. Empresas líderes compartilham infraestrutura de P&D e cooperam com universidades regionais, resultando em ciclos permanentes de melhoria tecnológica. Na Suécia, o Cluster Náutico de Västra Götaland integra empresas de construção naval, institutos de pesquisa e o governo regional para desenvolver soluções em sustentabilidade marítima e digitalização de embarcações.

No Canadá, o Waterloo Region Tech Cluster consolidou-se como uma referência em Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC), articulando empresas, empreendimentos inovadores nascentes e universidades em um ambiente colaborativo que retroalimenta a competitividade local. Todos esses exemplos demonstram que a atuação clusterizada cria sistemas vivos de aprendizado coletivo, em que a inovação se torna elemento natural da cultura empresarial e territorial.

O PAPEL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DAS INSTITUIÇÕES DE APOIO NO BRASIL

No Brasil, a adoção dessa lógica exige políticas públicas que compreendam a inovação como política econômica de longo prazo e que exigem a participação de diversos atores, além apenas da administração pública. Ações pontuais de fomento (principalmente público) não bastam; é necessário construir infraestrutura de apoio, redes de cooperação e mecanismos de governança plurais, além de fluxos de investimentos de diferentes tipos, para diferentes necessidades e oferecidas por atores públicos e privados. No entanto, é importante reconhecer o papel de liderança do poder público, especialmente no planejamento das estratégias de desenvolvimento territorial, com foco no impulsionamento das vocações econômicas de cada região, algo a ser feito especialmente com o apoio e parceria de entidades empresariais.

Um desafio importante é ampliar a base de conhecimento em inovação das lideranças empresariais, em todos os setores, para todos os portes de empresas. Programas de capacitação gerencial devem preparar esses líderes para lidar com os riscos inerentes à inovação, superando o medo do investimento incerto. Organizações como as do “Sistema S” (Sebrae, Senai, Senac, Senar, Senat, etc.) têm papel essencial na oferta de consultorias e serviços tecnológicos voltados às micro, pequenas e médias empresas, que representam mais de 90% do tecido empresarial brasileiro.

As universidades e centros de pesquisa também desempenham papel decisivo, especialmente na transferência de tecnologias em níveis intermediários de maturidade (TRL 4 a 6), ou seja, aquelas que precisam de parcerias empresariais para alcançar o mercado. Essa ponte entre ciência e economia é o ponto mais sensível e, ao mesmo tempo, o mais estratégico para o sucesso das políticas de inovação. Quando essa conexão é fraca, as ideias permanecem nos laboratórios; quando é forte, transformam-se em novos negócios, empregos e valor agregado. 

GOVERNANÇA, COOPERAÇÃO E VISÃO DE LONGO PRAZO

A governança é o alicerce dessa transformação dos ecossistemas locais de inovação. Por meio da liderança dos empreendedores e com a participação equilibrada e ativa dos demais atores, é possível que os clusters transformem estratégias em táticas e ações concretas. Esse fortalecimento da quádrupla hélice (empresas, academia, governo e sociedade civil) com foco nas vocações econômicas locais deve ser promovido por meio de fóruns permanentes de diálogo, conselhos de inovação e câmaras temáticas territoriais. 

Para que isto aconteça, as palavras chave que precisam ser colocadas em prática são liderança, persistência, consistência, paciência e resiliência, pois a inovação é, antes de tudo, um exercício coletivo. Exige confiança, visão compartilhada e coordenação de esforços para a promoção do empreendedorismo inovador. Territórios que conseguem transformar esta lógica em práticas de longo prazo, aumentam sua capacidade de adaptação às mudanças globais e constroem vantagens competitivas duradouras.

O CAMINHO PARA TRANSFORMAR VALES EM PICOS

O conceito de que “o mundo tem picos” convida os territórios a reconhecerem que a desigualdade de desenvolvimento é uma realidade, mas também que há caminhos concretos para superá-la. Se o “mundo plano” de Friedman ampliou o acesso global ao conhecimento e aos mercados, cabe agora aos territórios utilizar esses instrumentos para criar seus próprios picos de competitividade. Mais do que uma questão de aderir a uma tendência, é uma questão de sobrevivência da economia local.

A chave para isso está na inovação enraizada no território, articulada às vocações locais e liderada pelas empresas que o compõem. Neste sentido, os ecossistemas que conseguirem unir conhecimento, políticas públicas e protagonismo empresarial para impulsionar suas vocações formarão as bases de uma nova geografia econômica — mais inteligente, mais conectada e mais sustentável.

O desafio é transformar vales de estagnação em picos de prosperidade. E isso só será possível quando a inovação deixar de ser um discurso e se tornar uma prática compartilhada, cotidiana e permanentemente aplicada, principalmente, nas empresas.