[CULTURA DIGITAL] Guerra e Tecnologia, uma união estável

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[CULTURA DIGITAL] Guerra e Tecnologia, uma união estável

A inovação humana é desde sempre impulsionada por guerras e conflitos, mostrando o quão somos criativos em questão de sobrevivência

A inovação humana é desde sempre impulsionada por guerras e conflitos, sejam físicos ou diplomáticos, mostrando o quão somos criativos quando a sobrevivência urge por soluções antes não pensadas. / Foto: Medium @sgblank


[04.03.2022]


Por Alexandre Adoglio, CMO na Sonica e empreendedor digital.
Escreve quinzenalmente sobre
Cultura Digital para o SC Inova

Era um belo verão em 1946, logo após o rescaldo da Segunda Guerra Mundial, quando um grupo de estudantes russos chegou à residência do embaixador dos Estados Unidos, Averell Harriman, em Moscou. Estas crianças, da Владимира Ленина Всесоюзная пионерская организация, (a.k.a. Vladimir Lenin All-Union Pioneer Organization) trouxeram como presente uma bela réplica em madeira esculpida do Grande Selo dos Estados Unidos, acenando como gesto de amizade ao seu mais recente aliado de guerra.

O objeto foi colocado em lugar de destaque na residência do embaixador na cidade, que por sete anos ornou o ambiente sem levantar suspeitas. Até que, alguns membros das forças aliadas começaram a se questionar sobre acontecimentos estranhos ocorrendo em suas fileiras. 

Em 1951, um operador de rádio britânico estava monitorando o tráfego de rádio da força aérea soviética, quando reconheceu a voz do adido aéreo britânico na transmissão. Não está exatamente claro o que aconteceu em seguida, mas no ano seguinte, um americano ouvindo o tráfego de rádio militar captou uma conversa com vozes com sotaque americano que claramente pareciam vir da casa do embaixador norte-americano. Foram feitas algumas varreduras para busca de grampos na embaixada, mas não deram em nada. 

Mas em 12 de setembro de 1952, com suspeitas ainda mais fortes, um dos técnicos ligou um receptor na casa que imediatamente captou o embaixador ditando uma carta para sua secretária. Nova revista na sala indicou que o artefato de madeira era na realidade um dispositivo de escuta, sem fio e nenhuma alimentação de energia para fazê-lo funcionar.

Assustado com a descoberta, o embaixador guardou o equipamento consigo para enviá-lo em seguida para Washington, aonde foi devidamente desmontado e estudado. Os soviéticos haviam construído um dispositivo de escuta – apelidado de “A Coisa” pela comunidade de inteligência dos EUA – inserido dentro da réplica do selo e estavam espionando o embaixador e seus sucessores o tempo todo durante os sete anos em que esteve pendurado na casa. 

Detalhe importante, toda a captação e transmissão do equipamento acontecia através uma pequena antena de um quarto de onda, que não estava conectado a uma bateria ou fonte de alimentação; o dispositivo só funcionava quando um sinal de rádio da frequência correta era enviado ao dispositivo por um transmissor externo. Este sinal veio através de uma van estacionada nas proximidades que poderia transmitir um forte sinal de rádio, ativando a Coisa e permitindo que os soviéticos escutassem, por um receptor de rádio, conversas transmitidas involuntariamente de dentro do escritório da casa do embaixador.

Capítulo emblemático da inovação humana, que desde sempre é impulsionada por guerras e conflitos, sejam físicos ou diplomáticos, mostrando o quão somos criativos quando a sobrevivência urge por soluções antes não pensadas.

SEM PARAR PARANDO

Bisavó dos atuais dispositivos para pagamento de pedágio e estacionamento automático de shoppings, a Coisa foi desenvolvido pelo inventor russo Léon Theremin, recrutado para criar dispositivos de escuta de rádio de alta tecnologia em um laboratório secreto. E assim como ele muitos outros inovadores tiveram sua maior chance, obrigados ou não, quando romperam-se conflitos entre povos e nações.

Fora o comumente esperado, que são novos armamentos, tanques, e outras imbecilidades bélicas, temos uma infinidade de apetrechos do dia a dia forjados nas trincheiras do mundo:

SUPERCOLA 

Em 1942, o Dr. Harry Coover estava trabalhando duro tentando projetar novas lentes claras para miras de armas quando testou o composto químico cianoacrilato, mas o rejeitou por causa de suas intensas propriedades adesivas. O material provou ser útil em outros campos, principalmente como uma “super cola”.

O MOTOR A JATO

Em 27 de agosto de 1939, cinco dias antes de os nazistas invadirem a Polônia, um avião Heinkel He 178 sobrevoou a Alemanha. Foi o primeiro voo turbojato bem sucedido da história. Os Aliados seguiram o exemplo em 15 de maio de 1941, quando uma aeronave com propulsão a turbojato sobrevoou a RAF Cranwell em Lincolnshire, Inglaterra.  Embora os aviões a jato não tenham tido um impacto decisivo na Segunda Guerra Mundial eles continuariam a desempenhar um papel fundamental tanto na guerra quanto no transporte comercial em todo o mundo.

BORRACHA SINTÉTICA

Durante a Segunda Guerra Mundial a borracha foi essencial para as operações militares. Utilizada para esteiras de veículos e máquinas, bem como calçados, roupas e equipamentos de soldados, até a demanda de uma tonelada de borracha para a construção de um único tanque americano. Então, quando o Japão tomou o acesso às seringueiras no Sudeste Asiático em 1942, os Aliados foram forçados a encontrar materiais alternativos. Dezenas de novas fábricas de borracha sintética foram abertas nos EUA que chegaram a produzir de 800.000 toneladas de borracha sintética em 1944.

Melhor seria utilizarmos toda nossa competência criativa para evitar o caos ao invés de abraçá-lo.

RADAR

Embora a tecnologia de radar estivesse em uso antes da Segunda Guerra Mundial, ela foi desenvolvida significativamente e implementada em grande escala durante o conflito. Os sistemas de radar foram instalados ao longo das costas sul e leste da Grã-Bretanha nos meses anteriores à Segunda Guerra Mundial. E durante a Batalha da Grã-Bretanha em 1940, a tecnologia forneceu aos militares britânicos um aviso antecipado de ataques alemães iminentes. 

FORNO MICRO-ONDAS

Um dos engenheiros estava testando uma máquina de radar quando uma barra de chocolate em seu bolso derreteu. Ele começou a colocar diferentes alimentos nas proximidades do dispositivo e experimentou comprimentos de onda mais curtos – micro-ondas. Logo, o forno de microondas nasceu. A partir da década de 1970 a tecnologia podia ser encontrada em milhões de lares pelo mundo.

COMPUTADOR ELETRÔNICO

O primeiro computador eletrônico foi inventado em Bletchley Park, o quartel-general de decifração de códigos da Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial. Colossus, como a máquina ficou conhecida, era um dispositivo eletrônico projetado para decifrar mensagens nazistas criptografadas usando o código Lorenz.

FITA ADESIVA

A fita adesiva deve sua existência a Vesta Stoudt, uma operária de uma fábrica de munições de Illinois. Preocupada com o fato de os militares dos EUA estarem selando seus estojos de munição com fita de papel não confiável e permeável, Stoudt criou uma fita à prova d’água mais resistente, com suporte de tecido e, convencida pela promessa de sua nova tecnologia escreveu ao presidente Franklin D. Roosevelt, que logo aprovou a invenção para produção em massa e a fita adesiva nasceu. 

PENICILINA

A penicilina foi descoberta em 1928 pelo cientista escocês Alexander Fleming, como vimos anteriormente aqui na coluna. Após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o antibiótico foi popularizado e produzido em uma escala impressionante, provando ser inestimável no campo de batalha, afastando infecções e aumentando enormemente as taxas de sobrevivência entre os soldados feridos.  O Departamento de Guerra dos EUA descreveu a necessidade de produzir penicilina em massa como uma “corrida contra a morte”.

FOTOGRAFIA DIGITAL

Tecnologia inicialmente criada para eliminar a necessidade de recuperação das latas de filme ejetadas pelos satélites espiões, desenvolveu-se de forma rápida, sendo hoje muito utilizadas em smartphones por blogueirinhas e influencers de plantão.

INTERNET

Desenvolvida para ser uma rede de computadores confiável, a tecnologia levou à invenção da World Wide Web pelo cientista britânico Tim Berners-Lee; disponibilizando ampla disponibilidade de informação, telecomunicações e comércio eletrônico até os dias de hoje, culminado para as promessas descentralizadas que acontecerão nos próximos anos com a Web 3.0

ABSORVENTES ÍNTIMOS

Utilizados inicialmente nos campos de batalha como bandagens nos ferimentos, estes pedaços de celulose evoluíram para gazes cirúrgicas absorventes que começaram a ser utilizadas por enfermeiras britânicas e americanas em seu período menstrual.

LENÇOS DE PAPEL

Muito parecido com o desenvolvimento de gaze cirúrgica e absorventes menstruais, o advento de um tecido semelhante ao algodão porém mais forte e que poderia ser produzido a um preço baixo o suficiente para ser descartável levou ao lenço de papel moderno, que chegaram ao mercado na década de 50.

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SAQUINHOS DE CHÁ

Os britânicos adoram o chá, mas foram os alemães que popularizaram na Primeira Guerra Mundial a ideia de embalar o chá em saquinhos que podiam ser jogados direto em uma panela com água fervente. (Embora uma empresa americana tenha inventado a ideia, foram os alemães que produziram em massa os saquinhos de chá durante a guerra.)

COMIDA ENLATADA 

Manter as tropas alimentadas, abastecidas com munição e com acesso imediato a medicamentos é uma parte essencial de uma guerra bem-sucedida. Durante a Primeira Guerra Mundial, os soldados geralmente sobreviviam com rações de alimentos enlatados de baixa qualidade, incluindo carne enlatada, salsichas enlatadas, carne de porco e feijão e similares, permitindo aos comandantes transportar grandes quantidades de alimentos para as tropas sobreviverem.

Independente do grau de inovação destes produtos, é fato que conflitos causam um enorme impacto nas populações envolvidas e que nenhum tipo de invenção compensará a destruição e perda de vidas. Idealismo à parte, o melhor seria utilizarmos toda nossa competência criativa para evitar o caos ao invés de abraçá-lo em detrimento de lucro e poder.

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