Compras de inovação pelos órgãos públicos no Brasil: desafios e oportunidades

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Compras de inovação pelos órgãos públicos no Brasil: desafios e oportunidades

Apesar de haver leis que permitam a aquisição pelo poder público, por que não se os governos realizando compras de inovação em maior volume?

Apesar de haver leis que permitam este tipo de aquisição pelo poder público, por que ainda não se vê os governos realizando compras de inovação em maior volume? Imagem: Headway /Unsplash


[06.01.2022]


Por Marcus Rocha, empreendedor e colunista SC Inova.
Escreve quinzenalmente sobre ambientes e ecossistemas de inovação

Com o avanço de vários ecossistemas de inovação no Brasil, percebe-se em todo o país um aumento na oferta de novos produtos e serviços inovadores, desenvolvidos e levados ao mercado por startups, scale-ups, empresas estabelecidas, etc, a maior parte delas focada nos mercados B2C e B2B. Porém, considerando o tamanho das estruturas estatais brasileiras, com 27 unidades federativas e mais de 5.500 municípios, é de se estranhar as poucas iniciativas de soluções inovadoras B2G, ou seja, para os governos.

O estudo 100 Startups to Watch de 2021 mostra um cenário que reforça esse argumento. Das startups mais promissoras do país, pouquíssimas têm atuação B2G – talvez o maior destaque nesse sentido seja a catarinense epHealth – e nenhuma delas atua exclusivamente junto ao mercado B2G. Considerando também as startups mais bem-sucedidas do país, o relatório Corrida dos Unicórnios de 2021 também vai na mesma direção.

As atuais 12 startups com valor de mercado maior ou igual a 1 bilhão de dólares atuam nos seguintes mercados: serviços financeiros (3), logística (2), imóveis (2), varejo (2), entretenimento (1), mobilidade (1) e saúde e bem-estar (1). E, das outras 17 startups com potencial de alcançarem esse mesmo feito, a maior parte oferece soluções de marketing, serviços financeiros, ou mobilidade.

Mas quais podem ser as causas de tão poucas startups trabalhando com soluções B2G? 

Por uma razão bastante óbvia, as organizações públicas precisam ter cuidado redobrado quando efetuam gastos. Considerando principalmente o receio e a prevenção da corrupção e de compras desnecessárias, foram criadas diferentes leis e regulamentos que precisam ser seguidos pelas organizações públicas, sendo que a mais famosa é a Lei 8.666/1993, que estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Assim, com essa e outras leis, criou-se no Brasil todo um mecanismo para reduzir os riscos nas compras e contratações por parte do poder público.

Ocorre que tal situação criou um dilema complexo de solucionar quando se fala de inovação. O ato de investir em inovações, sejam internas ou por meio de contratações externas, possui riscos. E até pouco tempo atrás, não havia previsão legal para que contratações feitas pelo poder público pudessem considerar essa possibilidade, sob pena de irregularidade. É possível que tal regramento tenha criado uma cultura avessa a riscos em contratos do setor público, algo difícil e lento de resolver.

Mudanças nesse cenário começaram a aparecer com a Lei Federal de Inovação (lei 10.973/2004), que diz o seguinte no seu Art. 20 atualizado em 2016: 

Os órgãos e entidades da administração pública, em matéria de interesse público, poderão contratar diretamente ICT, entidades de direito privado sem fins lucrativos ou empresas, isoladamente ou em consórcios, voltadas para atividades de pesquisa e de reconhecida capacitação tecnológica no setor, visando à realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador.” 

Essa modalidade de contratação, chamada de “encomenda tecnológica”, também prevê que a contratação da ICT pública ou privada, ou da empresa, pode ocorrer por dispensa de licitação, desde que devidamente documentada a sua justificativa. 

NOVA LEGISLAÇÃO FACILITA COMPRA DE INOVAÇÕES PELO SETOR PÚBLICO

Recentemente entrou em vigor o Marco Legal das Startups (lei complementar 182 de 2021), que prevê um capítulo inteiro para facilitar a compra de inovações pelo setor público, com a finalidade de resolver demandas públicas que exijam solução inovadora com emprego de tecnologia, e promover a inovação no setor produtivo por meio do uso do poder de compra do Estado.

Essa nova lei introduziu a possibilidade de órgãos públicos contratarem pessoas físicas ou jurídicas, isoladamente ou em consórcio, para o teste de soluções inovadoras por elas desenvolvidas ou a serem desenvolvidas, com ou sem risco tecnológico. Outro ponto interessante é que o escopo dessa nova modalidade especial de licitação pode se restringir à indicação do problema a ser resolvido e dos resultados esperados pela administração pública, sem a necessidade de realizar a especificação da solução.

Os vencedores desse tipo de licitação devem assinar um Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI) com duração de até 12 meses, renovável por igual período, para a validação das inovações propostas. Caso a validação efetivamente ocorra, é possível assinar um contrato de fornecimento por 24 meses, também renovável pelo mesmo tempo.

Então, apesar de haver leis que permitam a compra de inovação pelo poder público, por que ainda não se vê o setor público realizando compras de inovação em maior volume?

O fato é que ainda existem desafios importantes a serem transpostos. O primeiro e talvez o maior de todos diz respeito à já mencionada cultura criada pelas leis anteriores para reduzir o risco das compras públicas. O diagnóstico com os Desafios para Inovação na Gestão Municipal, apresentado pelo Instituto Arapyaú na criação do Fórum Inova Cidades, mostra que 42% dos gestores públicos reconhecem que a insegurança jurídica e a falta de clareza na legislação são os maiores bloqueios para a contratação de inovações. Outros 16% ainda indicam que a falta de cultura de valorização da inovação, pela sociedade e pelos órgãos de controle, também é um fator inibidor relevante.

O Brasil tem potencial para ser fonte de desenvolvimento de startups e scale-ups com soluções B2G. Mas para que isso ocorra, é necessário que o mercado doméstico amadureça.
O Brasil tem potencial para ser fonte de desenvolvimento de startups e scale-ups com soluções B2G. Mas para que isso ocorra, o mercado doméstico precisa amadurecer. / Foto: Startaê Team, Unsplash

Portanto, há um medo generalizado por parte dos gestores de organizações públicas no sentido de contratar inovações, o que é algo relevante. As ações midiáticas feitas por alguns órgãos de controle durante denúncias de supostas irregularidades, que podem acabar com a boa reputação de gestores públicos inocentes, inibem ainda mais a vontade de contratar inovações, com ou sem legislação específica para isso.

Talvez por isso é que a contratação via encomenda tecnológica, prevista na lei federal de inovação desde 2004, não decolou, tendo sido utilizada muito mais por organizações públicas que já desenvolviam pesquisa científica e inovação antes da existência daquela lei.

Mesmo assim, parece haver uma oportunidade interessante com a nova modalidade de licitação introduzida pelo Marco Legal das Startups. A lei ainda é muito nova, então ainda é necessário aguardar para ver os resultados. De imediato, parecem ser necessárias algumas ações estruturantes para que o instrumento funcione adequadamente. Uma delas é a criação de uma base federal unificada dos processos de licitação e dos respectivos Contratos Públicos para Solução Inovadora (CPSI) em vigor ou já realizados, para que um mesmo processo de validação de inovação seja feito em diferentes órgãos públicos. 

Dentro da mesma lógica, seria importante estabelecer uma normativa que possibilite a contratação, por diferentes órgãos públicos, de uma inovação já validada no âmbito de um CPSI realizado com sucesso em outro local. Essas duas ações podem proporcionar eficiência e escalabilidade a inovações para o setor público, com redução de burocracia e segurança jurídica.

O Brasil tem um potencial grande de se tornar uma fonte de desenvolvimento de startups e scale-ups com soluções B2G para todo o mundo. Para que isso efetivamente ocorra, é necessário que o mercado doméstico amadureça, a partir da efetiva utilização das leis que estão em vigor para o setor público validar e contratar inovações, com segurança para órgãos públicos, gestores públicos, fornecedores, órgãos de controle e sociedade civil. 

Isso pode começar nos próprios ecossistemas de inovação, que precisam prestar mais atenção a esse assunto, envolvendo os órgãos públicos com presença no seu território, principalmente as prefeituras e os órgãos de controle. Afinal de contas, a inovação na administração pública pode facilitar muito todas as bases para o empreendedorismo inovador.

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