Hoje temos em voga uma estratégia duvidosa, focada na escala de vendas e no lucro em detrimento do alto consumo e giro nas prateleiras. Só que esta abordagem está levando pessoas ao vácuo emocional, numa busca eterna pelo “novo”.
[02.10.2020]
Por Alexandre Adoglio
Meu pai sempre foi um cara de muita habilidade com as mãos.
Lembro-me criança ao lado de sua bancada em pequeno quarto dos fundos da casa, aonde ele interagia com seus infinitos hobbies, que sempre exigiam destreza motora e uma série de estudos para serem operados. Desde aquarismo até eletrônica, o velho tinha aspiração de sempre se desafiar em tópicos além do seu trabalho; na época projetista de arquitetura.
Porém, o que mais me encantava, era a capacidade dele em consertar coisas. Munido de um extenso arsenal de ferramentas, que ocupava boa parte da bancada, gavetas e paredes, presenciei renascimento de brinquedos, móveis, peças de carro, luminárias e até um controle joystick do Atari que eu e meus irmãos detonamos jogando o game Decathlon.
Sem saudosismo barato, era uma época em que comprar “coisas” significava que você podia contar com elas por um bom período da vida, pois além de funcionarem por um bom tempo podíamos dar nossa própria manutenção, como no caso de escovar com Bombril a bobina do motor de um Fusca para ele voltar a funcionar.
Hoje temos em voga uma estratégia duvidosa, focada na escala de vendas e no lucro em detrimento do alto consumo e giro nas prateleiras. Não se tem muito noção de onde nasceu a obsolescência programada, em que produtos tem validade estabelecida para acabarem, mas fato é que esta abordagem está tornando o mundo pior e deixando as pessoas com vácuo emocional em uma busca eterna pelo “novo”.
O ETÉREO ABOCANHA O PERENE NO CAFÉ DA MANHÃ
Podemos citar alguns exemplos daquilo que se pratica neste mercado tech, lembrando que inovação também pode vir para trazer problemas, como já falamos aqui na coluna sobre os impactos da disrupção na sociedade.
Em meados de 2010 a filial brasileira da Epson iniciou um programa de testes no varejo para tirar a liderança da então HP, líder de impressoras na época com seu inovador sistema Ink Jet (jato de tinta). Querendo não só bater a concorrente como superá-la a longo prazo, a gigante japonesa despencou seus preços de hardware pela metade, com extensão ação de merchandising nas lojas e muito impacto na mídia.
Na época até o mais cético se surpreenderia com a abordagem, percebida como loucura num primeiro momento mas genial em termos de mercado ao longo do tempo. Aos poucos, sem muito alarde, a Epson começou a aumentar o preço dos cartuchos, fazendo com que a reposição dos mesmos custasse praticamente a compra de uma nova impressora em poucos meses.
Detalhe para arrematar a ação: os modelos de cartuchos eram retirados do mercado após dois anos de vendas, obrigando os consumidores a trocarem a impressora por um novo modelo. Contando com o acomodamento natural das pessoas, a Epson liderou por mais de 10 anos o mercado mundial com esta estratégia, lançada aqui no Brasil e ativada nos demais países depois.
Hoje este modelo está desafiado, pois a transformação digital minimizou a necessidade de impressão, além de gerar outras oportunidades com a possibilidade da recarga dos cartuchos, atendida por empresas como O Rei dos Cartuchos de Blumenau (foto), que hoje além de ser referência em reciclagem é também um case de mercado.
DANO AMBIENTAL X DANO SOCIAL
Além de ser uma estratégia insustentável a longo prazo, tanto em aspectos ambientais como sociais, a obsolescência programada consegue ser aliada a uma tática ainda mais vil. Com rápido desenvolvimento tecnológico algumas empresas concebem equipamentos que impossibilitam que os consumidores os reparem, mesmo levando em uma assistência técnica autorizada.
Como no caso da Apple (sim, vamos pedir musiquinha pra maçã que apareceu três vezes no #culturadigital) que não só blinda seus hardwares de forma inexpugnável, como também desacelera softwares de smartphones antigos para promover troca por novos e tem um duvidoso programa refurbished, considerando equipamentos com mais de 24 meses como vintage em suas lojas. Sendo agora processada pelo Congresso Americano por monopólio e imposição de restrições ao reparo de seus aparelhos, a empresa inclusive tem seu próprio YouTuber hater, que produz tutoriais ensinando ao consumidor como contornar o problema.
Numa última tentativa enfrentar este tipo de legado, a empresa de Cupertino lançou este ano sua nova linha de gadgets “sem carregador acompanhando”. Motivo? Ah, pensamos no meio ambiente, podes utilizar o carregador do ano anterior. Resultado? Você não leva o carregador mas o preço do produto continua o mesmo. #fail
No premiado documentário The Light Bulb Conspiracy (A Conspiração da Lâmpada) de 2010, a diretora Cosima Dannoritzer discute como a indústria determina duração curta para alguns produtos com o objetivo de estimular o consumo das versões mais atuais, citando exemplos como da substituição das lâmpadas incandescentes por LED (doeu o bolso, lembra?) e das meias-calças femininas que perderam resistência ao longo das décadas. Para assistir e se indignar clique aqui.
Já no filme Blade Runner, de Ridley Scott, o replicante Roy Batty, interpretado de forma incrível pelo ator Rutger Hauer, tem sua vida interrompida graças a obsolescência programada instalada em seu sistema desde o nascimento, em cena que é considera um dos grandes momentos do cinema.
PELO DIREITO DE REPARAR AS COISAS
Este tipo de posicionamento acabou criando um movimento global pelo direito do consumidor reparar seus produtos techs, o “Right to Repair”, que se mobiliza pela implantação de leis que garantam opções de conserto acessíveis aos consumidores. O objetivo é evitar o crescente aumento do lixo eletrônico, muitas vezes descartado antes do necessário por conta de estratégias dos fabricantes como a obsolescência programada e preço alto da reparação.
A dor é tão grande que o movimento já possui escala global, com capítulos no Canadá e Europa, promovendo atividades como o Café Reparo, que estabelece locais em todo mundo onde pessoas podem se juntar para consertar seus equipamentos quebrados, desde seu liquidificador até o motor do carro.
Fruto da cultura Hacker e Maker, o Café Reparo possibilita o encontro real de pessoas que gostam de arrumar coisas com quem prefere a manutenção ao descarte. Se tem interesse pode acessar algumas das comunidades nas redes sociais.
REUSE, REFUBISHED, REPAIR
Embora novidade em produtos eletrônicos/tech, a tática de reuso já está estabelecida em uma variedade de mercados, tanto pela necessidade como por estratégia de posicionamento.
A norte-americana, Pneus Continental, promove em todo mundo oficinas de reciclagem e considera que pelo menos 30% dos seus pneus são compostos de material reciclado, promovendo inclusive capacitação de seus canais para promover formas de longevidade nos produtos ao consumidor final.
Em Santa Catarina temos a centenária Hering, que através da Fundação Herman Hering promove desde 2017 o RETRAMA, spin-off do TRAMA AFETIVA, que reúne criativos para repensar consumo e questionar os padrões sociais existentes, utilizando o design como ferramenta de transformação social para o coletivo. Uma iniciativa que vai além do reuso, o RETRAMA promove a chamada Economia Circular, criando produtos pelo upcycling de materiais a partir de resíduos obtidos por meio de doação (foto abaixo).
Após uma triagem do material a equipe da Fundação pensa e elabora o design de peças possíveis com os tecidos e planeja seus processos construtivos para que as mesmas sejam materializadas, viáveis e utilitárias. Sob as práticas transformadoras desse movimento de economia afetiva, as peles são produzidas por cooperativas de costura parceiras – em sua maioria formada por mulheres – como a Coopergip’s, localizada em Blumenau, que desenvolve processos de costura, estabelece preços e produz as peças criadas.
A transformação é sempre mais importante do que a substituição
Em um ciclo virtuoso de trabalho, depois de costuradas, as peças são então disponibilizadas no Museu Hering em uma espécie de troca: Quem quiser apoiar o projeto ou simplesmente gostou e desejou alguma peça, pode realizar uma doação que cubra no mínimo os custos de produção da mesma e o reinvestimento no projeto, e levar para casa uma peça especial em um processo sustentável. Como a Fundação não tem fins lucrativos, os valores recebidos pagam os processos de confecção e geram uma porcentagem variável que é investida em demais projetos sociais apoiados pela entidade.
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REPARO COMO FILOSOFIA DE VIDA
O Kintsugi, (金継ぎ?, きんつぎ) é arte centenária do Japão que consiste em reparar as peças de cerâmica quebradas com ouro. Conta-se que um determinado Xogun ficou insatisfeito em ver suas estimadas peças de cerâmica estarem quebradas por algum acidente doméstico e enviou-as para ao ceramistas que as fabricaram para que fossem reparadas. Insatisfeito com o resultado ele solicitou aos artesãos de seu país uma nova abordagem ao problema.
Unindo os fragmentos com um verniz polvilhado com ouro, eles restauraram a forma original da cerâmica, embora as cicatrizes douradas e visíveis tenham transformado sua essência estética, evocando o desgaste que o tempo provoca sobre as coisas físicas, a mutabilidade da identidade e o valor da imperfeição. Assim, em vez de dissimular as linhas de fissura, as peças tratadas com esse método exibem as feridas de seu passado, adquirindo uma nova vida.
Tornam-se únicas e, portanto, ganham beleza e intensidade. Com o tempo esta arte se transformou numa potente metáfora da importância da resistência e do amor próprio frente às adversidades. Diante de erros e conflitos, é preciso saber se recuperar e superar as cicatrizes.
Da próxima vez que algo seu quebrar, tanto uma coisa sua como algo aí dentro de você, lembre-se que a transformação é sempre mais importante do que a substituição.
* ALEXANDRE ADOGLIO é CMO na Sonica e empreendedor digital.
Escreve semanalmente sobre Cultura Digital para o SC Inova.
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