Dos shows transmitidos dentro de um vídeo game às campanhas de publicidade estreladas por personagens digitais, a cultura online vem transformando nosso comportamento – seja como seres humanos ou como representações virtuais.
[04.12.2020]
Por Alexandre Adoglio*
Fevereiro de 2020. Uma multidão aguarda ansiosamente o início do show ao vivo do DJ Marshmello, divulgado e replicado à exaustão via sites especializados e redes sociais. Com um início apoteótico, o espetáculo teve direito a imensos momentos especiais, como fogos de artifício e hologramas. O DJ também encorajou os presentes a pularem e a dançarem de acordo com o ritmo das músicas tocadas, interagindo com todos ao mesmo tempo.
Detalhe: o show aconteceu dentro de um vídeo game online, o Fortnite, com um público estimado de 10 milhões de pessoas, número que contabiliza apenas os jogadores logados nos servidores do game, sem levar em conta o público que assistiu à apresentação por meio de transmissões ao vivo em outras plataformas. O show contou com regras feitas pela desenvolvedora Epic Games, que desativou as armas dos jogadores/personagens para que não se matassem durante o evento, já que o game é da classe Battle Royale.
Acontece que todos estes milhões de jogadores não estavam sendo representados por si próprios durante o show, mas sim por seus avatares criados dentro da plataforma, modificando completamente todas as características pessoais durante sua permanência online.
Ciente do sucesso da empreitada, a Epic Games montou um estúdio permanente em Los Angeles, onde são transmitidos em um palco virtual os mais variados shows em tempo real com artistas de renome em frente a uma estrutura com parede de LEDs e câmeras controladas remotamente para maior segurança. A agenda de apresentações é semanal, e pode ser conferida nas redes sociais do jogo. Para participar basta alterar o modo de jogo na tela do seu Lobby, à direita, selecionar Festa Royale e tocar em aceitar. Neste ponto basta pressionar jogar e ir até o palco do show marcado na imagem acima no horário divulgado e aproveitar a festa.**
PERSONA E PERSONAGEM
De fato nossa relação com esta representação e seus significados tem base histórica, podendo ser analisada desde as pinturas rupestres, quando os primeiros hominídeos se auto-representavam como figuras simples ao lado de diversas situações com fauna e flora local. Sob a análise de Carl Jung (1875-1961), no seu fundamental livro “O Homem e Seus Símbolos” (Harper Collins Brasil, 2016), o Arquétipo Persona dá ao sujeito a possibilidade de criar um personagem que pode não ser de fato ele mesmo. Este Arquétipo, nada mais é do que o rosto ou o papel público que o ser humano apresenta para os outros.
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Fazendo uma analogia com a #culturadigital, temos este princípio norteando o comportamento online em vários aspectos. Seja aquele perfil falso criado para stalkear alguém ou até mesmo naqueles indivíduos que no convívio presencial tem um determinado comportamento e na presença digital se transformam completamente – o que pode ser considerado como uma extroversão natural ou mesmo uma psiquê idealizada para estar em determinado contexto social no virtual.
CORRELAÇÃO HISTÓRICA
Personagens tiveram sua primeira aparição com o surgimento da comunicação de massa quando, entre o final do século XIX e começo do XX, as técnicas de impressão avançaram e os primeiros anúncios publicitários que uniam texto e imagem começaram a circular pelo mundo.
Neste suporte temos os primeiros arquivos apontando para um “senhor” na embalagem da aveia Quaker, que na verdade é um quacre, membro protestante da seita inglesa Sociedade dos Amigos, conhecidos naquela época como pessoas dignas, saudáveis e limpas. Na intenção de transferir estas características ao produto, os fabricantes da aveia estamparam o personagem na caixa, que no Brasil ainda é chamado de “freira” por não existirem quacres por aqui.
Observando esta evolução desde então, novas plataformas e tecnologias surgiram, provendo uma série de possibilidades para as marcas personificarem seus produtos por meio desta tática.
A moça do Leite Moça, o tigre da Kellog’s , o leão do Imposto de Renda Brasileiro, Jotalhão no molho Cica, e até o Garoto Bombril que sim é um personagem, porém de carne e osso.
Alguns já surgem como nativos digitais, como a Magalu que é ativa influencer – e que nesta semana foi “contratada” para ser a garota-propaganda da coleção Adidas Farm – enquanto outros são potencializados pelas ferramentas online, como a evolução do Baianinho das Casas Bahia, que acabou de estrear sua nova cara com pegada digital.
Em uma análise da taxitomia de personagens e mascotes, percebemos que muito do que se pratica em interface com usuários no digital é feito com base no entendimento da persona, através de construções percebidas ou criadas de identidade e comportamento.
EU SOU MEU AVATAR
Neste entendimento a personificação no mundo digital vem evoluindo de acordo com uma maior interação das pessoas com ferramentas online e a transformação comportamental causada pelo uso extensivo de redes sociais.
Como no caso da mais recém esposa de Elon Musk, a cantora-fada Grimes, que durante a gravidez com o bilionário criou uma auto-identidade para o mundo virtual. O avatar digital WarNymph é um alter-ego que nasceu “bebê”, está no momento está em sua fase “adolescente”, e vai evoluindo. Bem diferente de projetos como o Gorillaz, a ideia da cantora Grimes foi separar por completo a sua vida real da digital, se afastando do ambiente tóxico das redes e continuando a “existir” virtualmente (e a trabalhar) enquanto passou pelos últimos estágios da gravidez e durante os primeiros meses de maternidade. Para sua primeira aparição, WarNynph foi convidada para estampar a capa da revista The Face vestindo a luxuosa marca Balenciaga.
Outro exemplo nesta vertente é o Ion Göttlich, ciclista fictício criado pelo designer Claudio Pavan, que nasceu em uma série de animações teste para ganhar uma forte presença online nos últimos anos, participando das eliminatórias do Tour de France, treinando online para seus seguidores e por fim tendo um contrato firmado como “garoto propaganda” da marca Shimano, uma das mais fortes no segmento.
Em um raro caso de avatar digital que nasce primeiro e é procurado depois pelas grandes marcas, “Ion Göttlich é confiante beirando a arrogância, mas de uma forma risível e adorável. Ion fala muito, mas muitas vezes falha em cumpri-lo. O fracasso nunca parece manter Ion baixo e ele é muito rápido para seguir em frente e esquecer os contratempos do passado e poder para a próxima aventura” diz o criador sobre seu alter-ego.
Com o afastamento social vivido nos últimos meses nossa relação com as pessoas mudou em vários aspectos de como queremos ser percebidos, pois não existe a necessidade da interação real para nossa sobrevivência. Daqui um tempo não tão distante seremos todos avatares?
Caso tenha interesse, o Virtual Humans pode te ajudar no processo.
**Lembrando que até o momento de fechamento deste artigo os shows do Fortnite são fechados para usuários do Android e Windows, visto que dispositivos iOS não contam com a última versão de Fortnite, um dos requisitos para participar do evento, afinal a Apple baniu o jogo da sua loja de aplicativos e a Epic Games foi bloqueada na plataforma de desenvolvimento do iOS e MacOS.
* ALEXANDRE ADOGLIO é CMO na Sonica e empreendedor digital.
Escreve semanalmente sobre Cultura Digital para o SC Inova.
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