A falsificação no Brasil é mainstream, pensamos sempre em dar um jeito de não pagar por algo que usamos continuamente, como se fosse uma ofensa adquirir “direitos de uso” de um produto ou serviço.
[18.06.2021]
Por Alexandre Adoglio, CMO na Sonica e empreendedor digital.
Escreve sobre Cultura Digital para o SC Inova
Sábado de muito sol e todos nós lá, curtindo aquele casamento especial em família, protocolos de pandemia dando o tom da festa, que estava de certa forma fantástica por sua estrutura, decoração e fartura gastronômica. Um verdadeiro oásis de entretenimento em meio as pequenas aberturas que estamos observando após mais de ano de lockdown. Tudo indo conforme a programação, noivos felizes adentrando o salão em meio aos vivas dos convidados e aquela descontração marota que precede litros de álcool e uma provável ressaca no dia seguinte.
Em meio a tanta alegria, a noiva solicita o microfone para anunciar uma surpresa no telão ostentado acima do palco do evento. Alguns momentos de suspense até que uma música romântica invade as caixas de som e começamos a assistir um belo vídeo feito com muito esmero durante a cerimônia religiosa que antecedeu a festa. Lágrimas rolando em todos quando noto algo muito familiar escrito no canto inferior do telão da festa:
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Estupefato que fiquei, olhei ao redor para verificar se mais alguém havia notado a gafe. Nada, todos assistiam boquiabertos uma bela produção de vídeo, acompanhando a história dos noivos tarde adentro. Observei a equipe de produção do evento, da coordenadora até os responsáveis pelo áudio/vídeo, e nada, todos concentrados em suas tarefas enquanto a mensagem óbvia de um ato pirata pairava sobre todos.
Mesmo pelo absurdo da situação é fato que não nos incomodamos mais pelo lugar comum que é, ocorrendo diversas vezes tanto em nosso trabalho como nosso lar. Pirataria no Brasil é mainstream, pensamos sempre em dar um jeito de não pagar por algo que precisamos e usamos continuamente, como se fosse quase uma ofensa ter que colocar a mão na carteira para adquirir “direitos de uso” de um produto ou serviço.
Tá pronto, porque preciso pagar pra usar né?
CULTURA PORCA
E como sempre isto é mais um “desvio” daqueles com raízes históricas. Embora presente no mundo inteiro, é por aqui que temos alguns dos maiores casos na produção e consumo, tendo farto apoio do crime organizado em todo fluxo de cópia e venda, incluindo tutoriais que ensinam a craquear o sistema. Além, é claro, de enfiar aquele trojan esperto na sua CPU de forma a copiar dados bancários e outras informações rentáveis.
Talvez esta seja uma das razões pela alta taxa de mortalidade de novas empresas no Brasil. Não só startups, mas o pequeno empreendedorismo em geral sofre pelo baixo profissionalismo e apego em resolver tudo de qualquer jeito com o que se tem à mão, sem nenhum tipo de planejamento e tudo como autodidatas.
Tendo alcançando a 4ª posição no ranking mundial da pirataria, o Brasil se configura hoje como uma fonte de preocupação para as majors de Hollywood e companhias do Vale do Silício, que observam com assombro nosso grande gap social entre classes – o que leva a um absurdo desnível no poder de compra, com diversos estudos contextualizando esta triste realidade. Muito devido a esta falta de noção da sociedade em geral, como vimos no vídeo lindo do casamento.
MADE IN SANTA IFIGÊNIA
Roupas, sapatos, perfumes, eletrônicos em geral, podem ser encontrados na famosa rua Santa Ifigênia em São Paulo, com suas ruas lotadas de camelôs e lojas de artigos com procedência duvidosa e originais frutos de contrabando. Em grande parte responsabilidade do poder público, que leva anos para compreender movimentos de mercado, taxando com valores absurdos as inovações tecnológicas e se esforçando quase nada para fiscalizar a corrupção dos direitos e propriedades intelectuais.
Fora da questão destes impostos proibitivos, temos a própria estrutura de oferta dos serviços digitais no Brasil. Aqui, aportam sem nenhum tipo de legislação presente para alocá-los adequadamente, sendo rapidamente assimilados por nosso aspecto de early-adopters e em seguida surpreendidos com desvarios de uma classe política e sua estupidez generalizada nas questões de inovação. É só ver o caso da revisão tributária para serviços de streaming ocorrendo neste momento aqui no país.
Quem paga a conta? Eu, você, esse aí do seu lado, seu vizinho e amigos.
DJ PENDRIVE
Aliado ao avanço dos serviços de streaming, com diversas novas plataformas sendo geradas nos últimos anos, o compartilhamento de arquivos torna-se um problema crônico. Calcula-se que a pirataria de produtos em geral movimentou cerca de US$ 60bi no Brasil em 2019, sendo que na pirataria de streaming o prejuízo foi superior a US$15bi, em software na casa dos U$2bi. Estima-se que para cada 10 programas ou aplicativos vendidos no Brasil, 6 são piratas.
Fonte de corrupção, a pirataria desenfreada retarda o desenvolvimento econômico e social do país, pois afeta toda uma cadeia produtiva e impacta todos os níveis da sociedade. Desde a economia criativa, que necessita sobreviver com o rendimento de sua produção, passando pela mão de obra que desenvolve e produz os produtos e serviços, até mesmo estados e municípios que não obtêm as taxas referentes à movimentação de mercadorias.
Em uma escala similar, podemos fazer um comparativo do mercado de drogas, onde o usuário adquire produtos de uma cadeia criminosa que afeta a sua própria vida em algum momento, como exemplifica muito bem esta campanha.
Mesmo signatário da Convenção de Budapeste, e tendo um Ministério da Justiça reconhecido por sua cooperação em nível internacional contra a ciberpirataria, o país ainda tem muito o que avançar em relação ao descaso com a propriedade intelectual alheia. Principalmente no que se refere a nossa cultura de consumo, aquela vontade que temos de baixar um vídeo no torrent e crackear um software. Quem nunca, não é mesmo?
Mas como fica este nosso desejo em criar um ecossistema de tecnologia e inovação de competência mundial, se nem mesmo conseguimos nos atentar ao respeito pelo trabalho alheio?
Não é uma questão de legislação proibindo ou coagindo, é bem mais simples, é a regra de ouro, é fazer para o outro aquilo que você gostaria que fizessem por você.
Ou tem alguém que gosta de trabalhar em algo para qualquer um utilizar de graça?
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