Questões em aberto sobre o Marco Legal das Startups – parte 3, o Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI)

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Questões em aberto sobre o Marco Legal das Startups – parte 3, o Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI)

Um ponto a ser implantado é a adoção de uma cultura de tolerância a insucessos na administração pública, em relação a atividades de inovação.

Um ponto significativo a ser implantado nesse processo é a adoção de uma cultura de tolerância a insucessos na administração pública, em relação a atividades de inovação. / Foto: Scott Graham (Unsplash)


[27.09.2022]


Por Marcus Rocha, Conselheiro e Especialista em Ecossistemas e Habitats de Inovação.
Escreve quinzenalmente sobre o tema no SC Inova.

Este artigo dá continuidade a outros dois textos que foram escritos antes, o primeiro falando sobre os problemas de tentar encaixar a definição de Startup em um tipo de empresa, e como isso traz dificuldades para implantar políticas para o incentivo ao empreendedorismo inovador, e o segundo sobre os desafios para implantar o Sandbox Regulatório

Novamente, se reforça o disclaimer de que não se trata de um texto jurídico sobre o Marco Legal das Startups, Lei Complementar Federal 182 de 1º de Junho de 2021, mas de uma análise de cunho mais prático, em relação aos desafios do mundo real, além dos aspectos puramente legais, para ‘tirar do papel’ as iniciativas previstas neste importante mecanismo para o desenvolvimento do empreendedorismo inovador.

Para tanto, foram levantadas três questões importantes que ainda não estão devidamente esclarecidas, cada uma desenvolvida em um artigo:

Questão 1: A definição de Startup: Será mesmo que Startup é um tipo de empresa? 

Questão 2: O Sandbox Regulatório: Como proporcionar capilaridade para que inovações tenham autorização e acompanhamento regulatório experimental, em todo o país?

Questão 3: O Contrato Público para Solução Inovadora: Como destravar e dar segurança para a compra de inovações por parte de todas as esferas e poderes do Governo?

O Marco Legal das Startups dedica todo o seu capítulo VI, o que engloba os artigos 12 a 15, para descrever uma nova modalidade de compra pública, com o objetivo de proporcionar segurança jurídica aos órgãos públicos que necessitam e desejam adquirir soluções inovadoras desenvolvidas por organizações especializadas, especialmente empresas e instituições de ciência, tecnologia e inovação. Em resumo, estão previstas três fases:

  1. Fase de Licitação
  2. Fase de Contrato Público para Solução Inovadora
  3. Fase de Contrato de Fornecimento

Na fase de Licitação, o texto da lei descreve que se trata de uma modalidade especial de licitação, por meio da qual um órgão público poderá contratar pessoas físicas ou jurídicas, isoladamente ou em consórcio, para o teste de soluções inovadoras. Essas soluções podem já estar desenvolvidas, ou podem ainda exigir algum desenvolvimento.

Um ponto interessante nessa fase está relativo à especificação daquilo que se quer contratar. Normalmente, os ‘Termos de Referência’ das licitações especificam o que a administração pública quer comprar, pois se tem clareza em relação à solução desejada. No entanto, no caso de inovações, frequentemente se conhece o problema, mas ainda não se tem uma solução, ou se busco algo significativamente melhor em relação ao que existe atualmente no mercado. Nesse ponto, a lei coloca a possibilidade de que o escopo da licitação poderá se restringir à especificação do problema a ser resolvido e dos resultados esperados pelo órgão contratante, incluindo o detalhamento dos desafios tecnológicos a serem superados.

UM NOVO PARADIGMA PARA LICITAÇÕES

Aqui está um primeiro desafio, pois a cultura vigente nas licitações da administração pública é especificar soluções. Para criar termos de referência que especificam problemas ou oportunidades de melhoria significativa em relação à situação atual, será necessária a capacitação dos servidores públicos envolvidos, principalmente das áreas técnicas, mas também das áreas jurídicas. Isso também deverá ser estendido aos órgãos de controle, especialmente Ministério Público e Tribunais de Contas para que haja uma correta interpretação das ações práticas derivadas dessa nova modalidade de compras públicas.

Para o julgamento das propostas submetidas na fase de Licitação, o órgão público deverá criar uma comissão multidisciplinar, composta por pelo menos três pessoas, com boa reputação e reconhecido conhecimento no assunto descrito no termo de referência. Pelo menos uma dessas pessoas deverá ser servidor público integrante do órgão para o qual a inovação está sendo contratada, e pelo menos mais um deverá ser professor de instituição pública de educação superior na área relacionada ao tema da contratação.

Quanto aos critérios de julgamento das propostas, conforme o § 4º do Art. 13 do Marco Legal das Startups, além do preço indicado por cada proponente, também devem ser considerados, pelo menos:

I – o potencial de resolução do problema pela solução proposta e, se for o caso, da provável economia para a administração pública;

II – o grau de desenvolvimento da solução proposta;

III – a viabilidade e a maturidade do modelo de negócio da solução;

IV – a viabilidade econômica da proposta, considerados os recursos financeiros disponíveis para a celebração dos contratos; e

V – a demonstração comparativa de custo e benefício da proposta em relação às opções funcionalmente equivalentes.

Finalizada a fase de licitação, se inicia a fase do Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI). Um ponto interessante é que, para essa fase, pode ser selecionado mais de um proponente, caso haja mais de uma proposta com potencial relevante para resolver o problema proposto no Termo de Referência da licitação. Nesse caso, essa possibilidade já deve estar prevista no edital de licitação, indicando o limite de propostas que poderão ser selecionadas.

A fase de CPSI serve para a validação das inovações selecionadas pelo processo licitatório, e pode durar 12 meses, que podem ser renovados por até mais 12 meses. O valor máximo a ser repassado a cada contratada é de R$ 1,6 milhão, e conforme o § 1º do Art. 14 dessa Lei, as cláusulas do CPSI devem contemplar, pelo menos:

I – as metas a serem atingidas para que seja possível a validação do êxito da solução inovadora e a metodologia para a sua aferição;

II – a forma e a periodicidade da entrega à administração pública de relatórios de andamento da execução contratual, que servirão de instrumento de monitoramento, e do relatório final a ser entregue pela contratada após a conclusão da última etapa ou meta do projeto;

III – a matriz de riscos entre as partes, incluídos os riscos referentes a caso fortuito, força maior, risco tecnológico, fato do príncipe e álea econômica extraordinária;

IV – a definição da titularidade dos direitos de propriedade intelectual das criações resultantes do CPSI; e

V – a participação nos resultados de sua exploração, assegurados às partes os direitos de exploração comercial, de licenciamento e de transferência da tecnologia de que são titulares.

Importante destacar que a minuta do CPSI deve ser parte integrante do edital de licitação da fase anterior, na forma de anexo. Isso é importante para que os empreendedores participantes saibam de antemão como suas inovações serão avaliadas, além de condições que podem ser críticas para o futuro das suas empresas, tais como a definição da titularidade dos direitos de propriedade intelectual e a participação nos resultados da exploração da inovação proposta. Principalmente a partir dessas duas condições, os empreendedores proponentes poderão avaliar se participam ou não da licitação.

DESAFIO: DAR CONDIÇÕES NÃO SÓ ÀS STARTUPS, MAS TAMBÉM AOS SERVIDORES PÚBLICOS

Essa é a fase mais importante do processo, pois é quando se poderá verificar se a solução inovadora proposta efetivamente resolve ou não o problema descrito na licitação. No entanto, nota-se que é um processo de co-criação, na qual a participação ativa da equipe do órgão público contratante é tão importante quanto a qualidade da inovação proposta e do trabalho executado pelo fornecedor.

Aqui há um outro desafio importante: proporcionar as condições para que os servidores públicos envolvidos no CPSI tenham competência e tempo para se dedicar aos trabalhos nessa fase. A falta dessas condições pode fazer com que os testes de inovações falhem, o que pode inclusive criar uma espécie de trauma dentro do órgão público contratante, representando barreiras futuras à aquisição de outras inovações. 

Outro ponto significativo que precisa ser implantado nesse ponto é a adoção de uma cultura de tolerância a insucessos na administração pública, em relação a atividades de inovação. Isso deve ser implantado desde os órgãos de auditoria interna, até os órgãos de controle externo, que trabalham via de regra sob uma ótica mais punitiva quando uma compra pública não entrega o que estava previsto. É necessário criar uma nova compreensão em relação à compra de inovações. Partindo do pressuposto que todas as condições legais e técnicas foram atendidas, e que todas as partes envolvidas trabalharam corretamente, em caso de insucesso, ao invés da punição se deve buscar o aprendizado, para o que o problema não se repita.

Caso a fase do CPSI seja bem-sucedida, segundo essa nova legislação, o órgão público contratante não precisa fazer um novo procedimento licitatório, pois é possível firmar diretamente um contrato de fornecimento, sem maiores burocracias. Aqui é importante destacar que, caso na fase de CPSI haja mais de um fornecedor selecionado, para o contrato de fornecimento deve ser selecionado apenas 1, com as devidas justificativas técnicas.

 O Marco Legal das Startups permite que o escopo da licitação se restrinja à especificação do problema a ser resolvido
No caso de inovações, frequentemente se conhece o problema, mas ainda não se tem uma solução. O Marco Legal das Startups permite que o escopo da licitação se restrinja à especificação do problema a ser resolvido. / Foto: FORTYTWO (Unsplash)

Pena que nesse ponto a legislação não considerou a possibilidade de mesclar soluções que foram testadas no CPSI e que podem ser complementares, para a criação de um consórcio. No mercado, frequentemente são encontradas soluções inovadoras concorrentes que, individualmente, têm falta de determinadas funcionalidades, mas que juntas poderiam representar um produto ou serviço mais completo. Esta poderia ser uma melhoria futura para a lei.

Sobre o contrato de fornecimento, ainda é importante mencionar que pode ter vigência de até 24 meses, com possibilidade de renovação por mais 24 meses, com valor total de até 5 vezes o valor da fase do CPSI, ou seja, R$ 8 milhões.

Essa nova forma de contratação de soluções inovadoras parece ter o potencial de efetivamente fazer com que os órgãos públicos possam contratar inovações com segurança de forma ampla. Esse objetivo já tentou ser alcançado pelo mecanismo da “encomenda tecnológica”, que foi instituído pela Lei 10.973/2004 (Lei de Inovação), alterada pela Lei 13.243/2016, mas que ficou restrito apenas a alguns órgãos públicos que tinham necessidade de contratar inovações com maior carga de tecnologia, ou com gestores públicos mais arrojados.

TEXTO DA LEI É OMISSO EM RELAÇÃO A INOVAÇÕES JÁ VALIDADAS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

No entanto, essa nova modalidade de compras públicas parece ter algumas falhas importantes, que precisam de correção urgente. Talvez a maior delas esteja relacionada à fase do CPSI, pois o texto da lei é omisso em relação à possibilidade de órgãos públicos comprarem inovações já validadas pela administração pública. 

Podemos imaginar o seguinte exemplo:

  • O município A fez licitação nessa nova modalidade, para buscar inovação para resolver um problema de saneamento básico. Após selecionar uma inovação que passou pela fase de CPSI de forma bem-sucedida, assinou o contrato de fornecimento.
  • O município B, vizinho do município A e com o mesmo problema de saneamento, ficou sabendo da inovação durante a fase de CPSI. Ao saber que o município A assinou contrato de fornecimento, quer também contratar a mesma solução.
  • Da forma que a lei está escrita hoje, o município B precisará fazer a mesma licitação, realizar novamente todos os testes do CPSI para, então, poder assinar o contrato de fornecimento. Isso, obviamente, não é eficiente, pois gera burocracia e custos desnecessários para a compra de inovações já validadas.

A lei precisaria então, especificar como inovações validadas por meio de CPSI poderiam ser contratadas diretamente por outros órgãos públicos que têm problemas similares, sem a necessidade de refazer todo o processo, o que é redundante. Um caminho possível seria criar uma base nacional com todos os CPSI realizados com sucesso, especificando o problema que foi apresentado e a solução inovadora que foi testada e validada. 

Essa base nacional do CPSI  também ajudaria a verificar quando um mesmo problema passa a ter diferentes soluções similares validadas. Quando isso acontecer significará que foi criado um mercado, com soluções concorrentes. Assim, a contratação via CPSI deixa de fazer sentido, sendo indicado aos demais órgãos públicos que queiram resolver o mesmo problema que façam a compra via outras modalidades de licitação já estabelecidas.

Por fim, percebe-se uma semelhança muito grande entre esse novo mecanismo de compra pública de inovação, baseado no CPSI, com o processo de inovação aberta dos Living Labs, assunto já abordado nesta coluna. Aqui surge uma nova oportunidade para ampliar o alcance desses laboratórios quando forem operados por entidades do poder público, permitindo que o ciclo de inovação aberta tenha, com segurança jurídica, uma possibilidade concreta de contratação das inovações que forem efetivamente validadas. 

A partir de sua metodologia, o processo de um Living Lab mitiga uma série de riscos oriundos da inovação aberta. Somado ao CPSI, pode ser um instrumento importante para os órgãos públicos do Brasil que precisam muito incorporar inovações, pois contempla não apenas as questões técnicas e legais, mas também indicadores de desempenho, envolvimento das partes, capacitações, mentorias, entre outros pontos fundamentais para maximizar as chances de sucesso do teste e da validação de soluções inovadoras, criadas para resolverem desafios reais da sociedade.

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