O problema central é que boa parte das empresas encara a IA como uma “camada de eficiência”. É o equivalente a colocar um motor novo em uma carroça velha. / Imagem: ChatGPT/SC Inova.
[25.08.2025]
Por Eduardo Barbosa, CEO da Brognoli Imóveis e um dos responsáveis pelo Conselho Mudando o Jogo (CMJ) em SC e RS. Escreve sobre inteligência artificial no ambiente corporativo na série “Diários de IA”.
Você acha que é “AI-first”? Provavelmente não é.
Nos últimos meses, virou quase um mantra: toda startup se declara AI-native, todo incumbente afirma estar virando AI-first. Mas quando pedimos que expliquem o que isso significa de fato, a resposta invariavelmente escorrega para chavões: automação mais rápida, ferramentas mais inteligentes, agentes autônomos.
Acontece que isso não é suficiente.
A IA não é apenas mais um input para acelerar processos. Encará-la assim é repetir o erro das primeiras fábricas eletrificadas que, ao substituir o motor a vapor pelo motor elétrico, mantiveram as linhas organizadas em torno de um único eixo central.
O ganho foi marginal.
Somente quando alguém percebeu que a eletricidade permitia reorganizar completamente a arquitetura produtiva — descentralizando motores, flexibilizando linhas e redesenhando fábricas — é que a verdadeira revolução aconteceu.
AI-FIRST É ARQUITETURA, NÃO FERRAMENTA
O problema central é que boa parte das empresas encara a IA como uma “camada de eficiência”. É o equivalente a colocar um motor novo em uma carroça velha. O que de fato define uma era tecnológica é quando sua arquitetura altera a unidade de valor, a lógica de coordenação e os eixos de competição.
Veja alguns paralelos históricos:
- Veneza e a contabilidade dupla (século XIV): antes, o risco era atrelado a um único baú de moedas em um navio. Se ele afundasse, tudo ia junto. Ao redefinir a unidade atômica de valor para o lançamento contábil e o câmbio em papel, os venezianos puderam diluir riscos, criar seguros, abrir crédito e, sem perceber, fundar o embrião da corporação moderna.
- Movable type de Gutenberg: o livro manuscrito era a unidade indivisível de conhecimento. Com tipos móveis, a unidade passou a ser o caractere, permitindo modularidade, reuso e escalabilidade. O que parecia apenas “mais rápido” era, na verdade, uma completa reinvenção da economia da informação.
- Containerização no século XX: portos que viam o contêiner como simples automação do carregamento tiveram ganhos marginais. Já os que se reorganizaram como hubs intermodais, conectando rodovia, ferrovia e marinha, se tornaram protagonistas da globalização. O contêiner não foi uma caixa — foi uma nova arquitetura de comércio.
- Códigos de barras: para o Kmart, eram um jeito de agilizar o caixa. Para o Walmart, um fluxo contínuo de dados em tempo real capaz de inverter a relação com fornecedores e redefinir a logística global do varejo.
A mesma lógica se aplica à IA. Não basta adicionar copilots, chatbots ou dashboards inteligentes. O desafio é reconstruir a empresa a partir das propriedades arquitetônicas da IA: dados em fluxo, sistemas probabilísticos, feedback loops contínuos, capacidade de personalização em massa e agentes que tomam decisões.
QUATRO PILARES PARA SER “AI-NATIVE“
Sangeet Paul Choudary, em seu livro Reshuffle, resume essa transformação em quatro propriedades que sempre marcam sistemas realmente nativos a uma nova arquitetura:
- Redefinição da unidade atômica de valor: Assim como Figma trocou o arquivo pelo elemento como núcleo do design, a IA redefine o que é transacionável, mensurável e escalável. No setor financeiro, por exemplo, o cliente deixa de ser uma “conta” e passa a ser um feixe dinâmico de interações e comportamentos modelados probabilisticamente.
- Integração de restrições como design: As restrições não são falhas a serem contornadas, mas princípios para desenhar sistemas robustos. Containers tinham tamanhos fixos; convoys venezianos tinham datas inegociáveis; a IA traz suas próprias restrições — como a necessidade de dados estruturados, governança e supervisão humana. Quem abraça essas regras cria previsibilidade e escala.
- Rebundling organizacional: A cada arquitetura nova, sistemas inteiros são recompostos. O telégrafo e a ferrovia forçaram a invenção das zonas de tempo, da gestão descentralizada e, na prática, do capitalismo gerencial. Hoje, a IA exige rever organogramas, transferir autoridade para agentes autônomos, redesenhar orçamentos em torno de dados e criar novas formas de coordenação entre humano e máquina.
- Reframing da competição: A disputa não será sobre quem tem o maior modelo de linguagem ou a interface mais polida, mas sobre quem consegue reposicionar o eixo de competição. No varejo, foi a mudança do “poder da marca” para o “poder do dado”. Na IA, pode ser a migração da propriedade de produtos para a orquestração de ecossistemas.
A ARMADILHA DOS INCUMBENTES
Executivos costumam acreditar que perdem a corrida tecnológica por serem lentos. Mas a história mostra outra coisa: o verdadeiro entrave é a falta de agilidade estrutural. Adobe não perdeu para a Figma porque demorou. Perdeu porque estava presa à lógica do arquivo como unidade de valor. Para mudar, teria que desmantelar décadas de produtos, receitas e contratos baseados nesse modelo.
É o que ocorre agora com bancos, seguradoras, indústrias e até governos: todos enxergam o potencial da IA, mas não conseguem soltar os grilhões da arquitetura antiga que os sustenta.
O TESTE REAL PARA LÍDERES
Se você, empresário ou executivo, acredita estar em uma jornada AI-first, faça um teste simples. Responda:
- Qual é a nova unidade atômica de valor do meu negócio?
- Quais restrições da IA estou assumindo como princípios, e não tentando contornar?
- Quais processos, orçamentos e estruturas de autoridade foram reescritos para refletir essa nova arquitetura?
- Em qual eixo de competição quero vencer, e quais fortalezas tradicionais dos meus rivais se tornam irrelevantes nesse novo jogo?
Se você não consegue responder com clareza, talvez sua empresa não seja AI-first — apenas AI-decorated.
MAIS QUE EFICIÊNCIA, UMA MUDANÇA DE LÓGICA
Executar melhor dentro da lógica antiga pode gerar ganhos incrementais. Mas é pouco diante da transformação que se anuncia. A vantagem real está em redesenhar sistemas inteiros em torno da arquitetura da IA.
Assim como contêineres redefiniram o comércio global e tipos móveis reinventaram o conhecimento, a IA redefine hoje a lógica de valor, coordenação e competição. As empresas que entenderem isso não estarão apenas usando IA. Estarão se tornando IA.
REFERÊNCIAS
- CHOUDARY, Sangeet Paul. You think you are AI-first, but you probably aren’t. Platforms Substack, 24 ago. 2025. Disponível em: https://substack.com/home/post/p-171717858. Acesso em: 24 ago. 2025.
- CHOUDARY, Sangeet Paul. Reshuffle: Who Wins When AI Restacks the Knowledge Economy. New York: Self-Published, 2024.
- CHANDLER, Alfred D. The Visible Hand: The Managerial Revolution in American Business. Cambridge: Harvard University Press, 1977.
- MOKYR, Joel. The Lever of Riches: Technological Creativity and Economic Progress. New York: Oxford University Press, 1990.
- NORTH, Douglass C. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
- MCCLOSKEY, Deirdre. Bourgeois Dignity: Why Economics Can’t Explain the Modern World. Chicago: University of Chicago Press, 2010.
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