O que fazer se as normas legais ainda não permitem a operação da inovação no mundo real? A lei recentemente aprovada ainda é bastante genérica em relação aos “ambientes regulatórios experimentais” e é um obstáculo para o desenvolvimento. Foto: Markus Spiske (Unsplash)
[13.09.2022]
Por Marcus Rocha, Conselheiro e Especialista em Ecossistemas e Habitats de Inovação.
Escreve quinzenalmente sobre o tema no SC Inova.
Como o título já indica, este artigo dá continuidade ao texto que foi escrito anteriormente, que falou sobre os problemas de tentar encaixar a definição de Startup em um tipo de empresa, e como isso traz dificuldades para implantar políticas para o incentivo ao empreendedorismo inovador, principalmente na forma de uma legislação, entre outras ações.
Novamente, se reforça o disclaimer de que não se trata de um texto jurídico sobre o Marco Legal das Startups, Lei Complementar Federal 182 de 1º de Junho de 2021, mas de uma análise de cunho mais prático, em relação aos desafios do mundo real, além dos aspectos puramente legais, para ‘tirar do papel’ as iniciativas previstas neste importante mecanismo para o desenvolvimento do empreendedorismo inovador.
Para tanto, foram levantadas três questões importantes que ainda não estão devidamente esclarecidas, cada uma desenvolvida em um artigo:
Questão 1: A definição de Startup: Será mesmo que Startup é um tipo de empresa?
Questão 2: O Sandbox Regulatório: Como proporcionar capilaridade para que inovações tenham autorização e acompanhamento regulatório experimental, em todo o país?
Questão 3: O Contrato Público para Solução Inovadora: Como destravar e dar segurança para a compra de inovações por parte de todas as esferas e poderes do Governo?
Este texto busca detalhar a questão do Sandbox Regulatório: Como proporcionar capilaridade para que inovações tenham autorização e acompanhamento regulatório experimental, em todo o país?
Esta coluna já escreveu um texto sobre este mesmo assunto, mas aqui serão explorados outros pontos complementares. Primeiro, importante relembrar que, para compreender corretamente o que é esse mecanismo previsto no Marco Legal das Startups, se deve verificar de onde veio a expressão “Sandbox”.
Trata-se de uma metáfora relacionada à instalação infantil “caixa de areia”, presente em parquinhos de todo o mundo. É um local cercado e seguro, onde as crianças podem construir suas próprias brincadeiras, sejam castelos de areia, pistas de corrida, ou várias outras possibilidades, limitadas apenas pelo tamanho da caixa, pela quantidade de areia, pelos materiais disponíveis, pela quantidade de participantes, e pela criatividade. Se a ideia não der muito certo, ou se a energia acabar, é só desmanchar o que foi feito e tentar algo diferente depois. E, se der certo, é possível repetir e melhorar a brincadeira na próxima visita. Um ponto importante é que não há regras pré-definidas nesse lugar, ou talvez só haja uma: não é permitido que as crianças joguem areia umas nas outras.
Percebe-se que essa metáfora tem muita utilidade no mundo real da inovação. Considerando a natureza formal das organizações, tanto privadas quanto públicas, que possuem processos estruturados, organogramas, papéis, responsabilidades, funções, etc., é um risco muito grande levar os processos de inovação para coexistirem nesse ambiente, já que soluções inovadoras surgem exatamente para substituir o que atualmente existe, criando um ambiente de atrito e tensão que é desnecessário. Aquelas que tentam incorporar a inovação dentro do ambiente organizacional, ou passam a ter problemas na sua dinâmica cotidiana, ou fazem o “Teatro da Inovação”, como Steve Blank destacou em um artigo bastante contundente, escrito em 2019, e que já foi abordado nesta coluna.
A partir disso, as organizações passaram a aplicar a metáfora da caixa de areia (Sandbox) na forma de instalações externas, normalmente integradas a ambientes como Parques Tecnológicos, Centros de Inovação, Aceleradoras ou Incubadoras de negócios inovadores. Dessa forma, conseguem fazer Inovação Aberta, integrada ao ecossistema local de inovação.
LEIA OUTROS ARTIGOS DO AUTOR
No entanto, aquelas inovações de caráter mais radical ou disruptivo, muitas vezes se deparam com um outro desafio, que é independente do local onde estão sendo desenvolvidas: o que fazer se as leis ou outras normas legais existentes ainda não permitirem a operação da inovação no mundo real?
Exemplos para isso não faltam, em diversas áreas:
- Veículos autônomos, independentemente se são rodoviários, ferroviários, marítimos ou aéreos;
- Softwares com Inteligência Artificial para setores altamente regulados, tais como Saúde, Trânsito, Sistema Financeiro, Sistema Aéreo, Justiça, etc.
- Produtos para a Saúde Humana ou Animal, tais como medicamentos, vacinas, próteses, órteses, terapias genéticas, etc;
- Produtos alimentícios geneticamente modificados, ou desenvolvidos em laboratório.
Para todos os exemplos acima sempre há no Brasil uma autoridade com abrangência Federal que é responsável por garantir, seja por meio de uma lei ou outro dispositivo normativo, as regras e limites para que produtos, serviços, ou sistemas, possam operar.
Como o movimento pelo desenvolvimento de inovações é cada vez mais forte, colocando cada vez mais pressão nessas autoridades nacionais reguladoras, foi necessário desenvolver um mecanismo para essas organizações pudessem acompanhar, entender, aprender, validar inovações e, se for o caso, permitir que elas sejam levadas à sociedade, dentro de novas regras atualizadas.
O SANDBOX NO TEXTO DO MARCO LEGAL
Nota-se que, para essas questões regulatórias, a metáfora da “caixa de areia” novamente se encaixa muito bem, gerando o nome “Sandbox regulatório” e que, no Marco Legal das Startups recebeu um capítulo específico para o assunto:
CAPÍTULO V – DOS PROGRAMAS DE AMBIENTE REGULATÓRIO EXPERIMENTAL (SANDBOX REGULATÓRIO)
Art. 11. Os órgãos e as entidades da administração pública com competência de regulamentação setorial poderão, individualmente ou em colaboração, no âmbito de programas de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório), afastar a incidência de normas sob sua competência em relação à entidade regulada ou aos grupos de entidades reguladas.
§ 1º A colaboração a que se refere o caput deste artigo poderá ser firmada entre os órgãos e as entidades, observadas suas competências.
§ 2º Entende-se por ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório) o disposto no inciso II do caput do art. 2º desta Lei Complementar.
§ 3º O órgão ou a entidade a que se refere o caput deste artigo disporá sobre o funcionamento do programa de ambiente regulatório experimental e estabelecerá:
I – os critérios para seleção ou para qualificação do regulado;
II – a duração e o alcance da suspensão da incidência das normas; e
III – as normas abrangidas.
Destaca-se também que, conforme o Inciso II do Artigo 2º dessa mesma lei, o ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório) é o “conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado.“
A partir da leitura desses trechos do Marco Legal das Startups, nota-se inicialmente que o texto é bastante genérico. Aliás, essa característica está presente na própria definição da aplicabilidade da lei, pois o Inciso I do parágrafo único do Artigo 1º da lei diz que ela “estabelece os princípios e as diretrizes para a atuação da administração pública no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios“.
O sandbox regulatório deve existir para ajudar o desenvolvimento de inovações que efetivamente melhorem a sociedade, sem colocar impedimentos.
O autor deste artigo perguntou para especialistas em Direito se isso quer dizer que a lei vale todos os Poderes e Órgãos Públicos do Brasil, incluindo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e, surpreendentemente, foram recebidas respostas diferentes. Alguns disseram que sim, outros disseram que só se aplicaria aos órgãos do Poder Executivo. E todos opinaram que a redação desse trecho da lei não é boa.
Este é um problema bastante sério no texto da lei, já que não deixa de forma suficientemente clara se os demais Poderes também necessitam desenvolver seus Sandboxes Regulatórios. Nota-se, por exemplo, o uso de tecnologias bastante inovadoras nos Poderes Legislativo e Judiciário, com especial destaque à Inteligência Artificial, o que é algo bastante positivo. Mas ainda não se vê um cuidado regulatório mínimo, o que pode trazer o risco de algumas consequências negativas no futuro, em especial a falta de padrões tecnológicos mínimos que podem afetar a vida de todas as pessoas físicas e jurídicas do país.
OS RISCOS QUE PODEM FAZER A LEI “NÃO PEGAR”
Outro ponto fundamental é garantir o acesso rápido e desburocratizado ao Sandbox Regulatório, a todos aqueles que possuam inovações que precisam ser avaliadas. Para isso, ainda é necessário desenvolver um trabalho para definir pontos importantes tais como:
- Qual órgão será responsável pelo trabalho do Sandbox Regulatório em cada área temática, de forma que a organização que necessite de autorização regulatória temporária saiba a quem recorrer diretamente, sem ter que percorrer uma “via sacra” em vários órgãos públicos até encontrar a resposta correta;
- Como se dará o processo de recebimento de solicitações, análise, autorização, acompanhamento e validação, em relação às inovações que precisarem acessar esse mecanismo;
- Quais as diretrizes para as definições de limites, sejam geográficos (área permitida) ou funcionais;
- O que fazer em termos regulatórios quando uma inovação for validada;
- Qual o papel dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que apesar de não terem competência regulatória, são fundamentais para o acompanhamento e validação de inovações;
- Como garantir o acesso ao Sandbox Regulatório em todo o país.
O Brasil tem cerca de 5.570 municípios e deve-se permitir e compreender que inovações poderão surgir em cada um deles, com a possibilidade de acesso ao Sandbox Regulatório. A partir disso, pode-se ter dois caminhos não excludentes para permitir o acesso ao mecanismo: concentrar o recebimento de todas as solicitações nas sedes nacionais dos órgãos reguladores; ou os esses órgãos reguladores estabelecerem parcerias com Estados e Municípios chegarem o mais próximo possível das organizações produtoras de inovações. Essas parcerias poderão ser muito úteis para as etapas posteriores, principalmente o acompanhamento e a validação dos testes, bem como os encaminhamentos para a atualização das normas vigentes quando uma inovação for bem-sucedida.
Os pontos levantados neste artigo precisam ser definidos com clareza e com urgência, caso contrário teremos mais um mecanismo estabelecido em lei que “não irá pegar”, ou seja, ficará apenas no texto legal e sem aplicação prática na sociedade. Além de buscarem o funcionamento efetivo do Sandbox Regulatório, essas questões também precisam garantir o princípio básico estabelecido no Artigo 37 da Constituição Federal, que diz que “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência“. Aliás, quem sabe caberia uma melhoria no Marco Legal das Startups, no já mencionado Inciso I do parágrafo único do Artigo 1º, esclarecendo a validade da lei para a “administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios“.
O Sandbox Regulatório deve existir para ajudar o desenvolvimento de inovações que efetivamente melhorem a sociedade, sem colocar impedimentos. Deve ser um suporte importante para dar maior segurança àqueles que inovam, mas, no estágio em que se encontra, é apenas uma ideia em um texto de uma lei que tem um bom potencial de apoiar o empreendedorismo inovador.
Sem a continuidade dos trabalhos para esclarecer e detalhar pontos ambíguos ou genéricos, além de efetivamente desenvolver processos para ativar os instrumentos previstos em todas as regiões do país, não terá efeito algum. E, com certeza, os inovadores não deixarão de realizar seu trabalho empreendedor por causa da lentidão da administração pública em ativar esse mecanismo de suporte.
LEIA TAMBÉM:
SIGA NOSSAS REDES