Modelo surgiu a partir da “Estratégia Europa 2020”, com objetivo de transformar o modelo de desenvolvimento econômico, baseado na inovação, em uma ferramenta para criar valor, competitividade e prosperidade a longo prazo. / Imagem: DALL-E/SC Inova
[23.10.2024]
Por Marcus Rocha, especialista em Ecossistemas e Habitats de Inovação.
Escreve mensalmente sobre o tema no SC Inova.
Em tempos de transformação tecnológica acelerada e concorrência em níveis globais em todos os mercados e segmentos, a inovação se torna como um dos principais componentes estratégicos para todas as organizações que desejam sobreviver e prosperar. No nível das políticas públicas, a necessidade de estratégias coordenadas e inteligentes que possam guiar os investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação se tornou um imperativo para países e regiões que buscam posicionar-se de forma competitiva no cenário global.
É cada vez mais importante criar mecanismos que gerem as condições para que a inovação seja desenvolvida em escala, para todos os atores dos ecossistemas locais de inovação e, assim, criar ciclos positivos de desenvolvimento sustentável. De maneira inversa, não agir neste sentido pode abrir a oportunidade da estagnação das empresas da região, potencialmente plantando as bases de crises econômicas e sociais futuras, pela perda generalizada de competitividade e consequente fechamento de negócios, postos de emprego, e perda de arrecadação tributária, entre outros efeitos negativos.
Nesse contexto, se destaca o modelo das Estratégias de Inovação Regional (Regional Innovation Strategies 3, ou RIS3), criado na União Europeia e que se consolidou como uma referência mundial para a promoção de ecossistemas de inovação por meio da ‘especialização inteligente’. Importante notar que este método sugere uma abordagem de especialização econômica para territórios que vai além da simples identificação de setores ou segmentos estratégicos, pois considera uma complexidade maior das relações e competências dos atores dos ecossistemas locais.
O HISTÓRICO DO RIS3
O RIS3 foi introduzido como parte da ‘Estratégia Europa 2020’, uma iniciativa da União Europeia (UE) voltada para o crescimento inteligente, sustentável e inclusivo. A estratégia reconheceu que os fundos europeus voltados ao desenvolvimento regional precisavam ser utilizados de forma mais eficaz, canalizando investimentos para áreas estratégicas com base em evidências e alinhadas com as capacidades regionais. O objetivo era transformar o modelo de desenvolvimento econômico, baseado na inovação, em uma ferramenta para criar valor, competitividade e prosperidade a longo prazo.
No entanto, o conceito de ‘especialização inteligente’ que fundamenta o RIS3 começou a ser delineado muito antes disso. Na década de 1990, foi criado um primeiro modelo de Estratégias de Inovação Regional (RIS), para a promoção de um desenvolvimento descentralizado, permitindo que cada região definisse prioridades e direções de acordo com suas características. Apesar de propor um modelo comum de referência, a versão original do RIS ainda não trazia um direcionamento claro para concentrar os investimentos em áreas específicas de potencial competitivo em cada território e nem oferecia um guia detalhado sobre como alocar os recursos de forma estratégica e coordenada.
A ideia é simples mas poderosa: as regiões devem focar seus esforços e recursos nas áreas onde têm vantagens competitivas naturais ou adquiridas.
Com o tempo, surgiu a necessidade de um modelo mais robusto e eficaz, quando foi desenvolvido o conceito de ‘especialização inteligente’ para aprimorar o modelo originalmente proposto. Com isso, surge o RIS2, que incorporou ao RIS original diretrizes para o alinhamento das políticas regionais de desenvolvimento econômico com as tendências de inovação e de competitividade global. No entanto, foi apenas com a terceira versão do modelo, o RIS3, que o conceito de ‘especialização inteligente’ se consolidou como o eixo central da estratégia de inovação regional.
A ideia da especialização inteligente é simples, mas poderosa: as regiões não devem tentar se destacar em todas as áreas, mas sim focar seus esforços e recursos nas áreas onde têm ‘vantagens competitivas naturais ou adquiridas’. Isso significa que, em vez de distribuir investimentos de forma dispersa, sem foco claro, os territórios devem concentrar-se nas suas competências locais, fomentando a inovação onde há maior potencial de impacto. Essa abordagem garante que os investimentos em inovação tenham um retorno mais significativo e que as regiões possam competir de forma mais eficaz no cenário global.
O RIS3 rapidamente se tornou uma referência global. A metodologia foi adotada por diversos países e regiões fora da UE, como Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão, que adaptaram o modelo às suas próprias realidades territoriais. Também foi amplamente reconhecida em países em desenvolvimento, particularmente na América Latina, onde diversas regiões buscaram aplicar o conceito para promover o crescimento econômico e a inovação sustentável.
PRINCIPAIS PONTOS DO RIS3 E O PLANEJAMENTO DE ESPECIALIZAÇÃO INTELIGENTE DE UM TERRITÓRIO
O modelo RIS3 é a base da plataforma de Especialização Inteligente de Territórios da União Europeia e é fundamentado em uma série de princípios e diretrizes que orientam as lideranças de cada região no planejamento estratégico para o seu desenvolvimento sustentável, pautado na inovação. Importante lembrar que o conceito de desenvolvimento sustentável mencionado se baseia no princípio da Triple Bottom Line, que busca uma visão de negócios de longo prazo equilibrando as dimensões econômico-financeira, social e ambiental.
Para isso, o planejamento de acordo com o RIS3 exige um processo de formulação embasado por dados locais e com a participação ativa de atores de todas as categorias da quádrupla hélice dos ecossistemas de inovação: administração pública; iniciativa privada; academia; sociedade civil. O objetivo inicial é chegar a um consenso sobre quais são as áreas de especialização que podem gerar um impacto significativo na competitividade econômica do próprio território, da sua região e do país como um todo.
Os principais pontos do RIS3 são:
1. Descoberta Empreendedora: O conceito de descoberta empreendedora é central no RIS3. Trata-se de um processo de identificação colaborativa das áreas com maior potencial de inovação, baseado na convergência de ‘capacidades locais’ com ‘necessidades globais’. Neste momento, os atores do ecossistema precisam trabalhar juntos para mapear oportunidades e determinar onde os esforços e investimentos devem ser concentrados. Essa abordagem colaborativa é essencial para garantir que o escopo da especialização inteligente considere tanto as oportunidades locais quanto as tendências globais de mercado, da forma mais convergente e equilibrada possível.
2. Foco nas Vantagens Competitivas: O RIS3 enfatiza que os territórios devem priorizar o desenvolvimento de ‘vantagens competitivas específicas’, em vez de tentar competir em todas as áreas. Isso significa que cada território deve identificar setores ou áreas onde existam competências estabelecidas ou emergentes, que podem ser alavancadas para impulsionar o desenvolvimento econômico. Essa abordagem admite, de forma óbvia, que não é possível que um território seja excelente e competitivo em todos os setores da economia, evitando a dispersão de recursos. Assim, permite uma concentração de esforços nos segmentos onde o retorno econômico e social é mais provável.
3. Desenvolvimento e Adoção de Soluções Inovadoras para Desafios Locais e Globais: O RIS3 não se concentra apenas em oportunidades econômicas imediatas, mas também no alinhamento das atividades inovadoras de cada território com os desafios das cadeias produtivas dos segmentos econômicos mais relevantes, sempre com uma perspectiva global. Além disso, também recomenda que desafios mundiais mais transversais sejam considerados, tais como transição energética, mudança climática, entre outros. Ao direcionar investimentos para resolver problemas que não sejam apenas locais, as regiões também garantem que estão posicionadas para capturar mercados emergentes e atender às demandas globais, o que amplia sua competitividade.
4. Governança Participativa: A governança é um aspecto central no desenvolvimento do RIS3. A implementação da especialização inteligente requer uma ‘participação ampla e inclusiva’ de atores que fazem parte das cadeias produtivas dos segmentos priorizados, novamente sob a ótica da quádrupla hélice dos ecossistemas de inovação. Independentemente do formato de implementação da estrutura de governança, o fundamental é garantir que as estratégias sejam a expressão mais fiel das realidades locais e que haja um compromisso coletivo em torno de sua efetiva execução.
5. Monitoramento e Ajuste Contínuos: O RIS3 é um modelo flexível que permite ajustes à medida que novas informações surgem ou as circunstâncias mudam. Para tanto, é essencial que haja um monitoramento contínuo de ações e indicadores, de forma a garantir que os investimentos e os trabalhos estejam no caminho certo, além de permitir identificar problemas o mais rápido possível para realizar ajustes de curso conforme necessário. Esse processo dinâmico de revisão deve ser diretamente vinculado à estrutura de Governança e visa garantir que as estratégias possam evoluir e se adaptar a novos desafios e oportunidades.
A partir dos pontos descritos acima é possível perceber que o planejamento da especialização inteligente de um território, com base no método RIS3, segue uma lógica de identificação, foco e ação colaborativa. Além disso, nota-se que é fundamental, a todo o tempo, a aplicação de diferentes práticas de ciência de dados e de gestão por evidências, desde a identificação dos segmentos econômicos de maior potencial, seguido pela colaboração entre os atores regionais para transformar as estratégias em táticas e ações concretas, que promovam efetivamente um impacto significativo na competitividade econômica no território.
APLICAÇÃO DO RIS3 EM ECOSSISTEMAS DE INOVAÇÃO: DESENVOLVIMENTO DE CLUSTERS
A implementação do RIS3 nos ecossistemas de inovação tem sido um fator-chave para o sucesso de várias regiões, pois permite o desenvolvimento de clusters relacionados às áreas de especialização. Vale lembrar que, no contexto do empreendedorismo e da inovação, um cluster é um grupo de empresas e instituições de um setor ou segmento econômico específico, que são interconectadas e localizadas próximas umas das outras em termos geográficos, e que trabalham juntas para obter maior vantagem competitiva.
O RIS3 incentiva os territórios a desenvolverem clusters focados nas áreas de especialização identificadas durante o processo de descoberta empreendedora. Ao reunir empresas – incluindo as já estabelecidas, além de startups e scale-ups -, universidades e centros de pesquisa, com o apoio da administração pública e da sociedade civil, cria-se um ambiente que favorece a criação e o desenvolvimento de empreendimentos com alto potencial e é caracterizado pela alta disponibilidade e mobilidade de recursos, incluindo pessoas, capital e informação, maximizando o potencial de inovação.
Um exemplo notável da aplicação do RIS3 em ecossistemas de inovação é o caso da região de Andaluzia, na Espanha. A região usou o RIS3 para se concentrar no setor de tecnologias para energias renováveis, aproveitando sua abundância de recursos naturais e a base de conhecimentos nessa área, compartilhada por diferentes atores do ecossistema local. Assim, a Andaluzia conseguiu criar um cluster de inovação em energia limpa, cuja governança está estruturada na Associação Claner, que atraiu investimentos internacionais e permitiu o desenvolvimento de novas tecnologias de ponta. Hoje, a região é reconhecida como uma das líderes europeias em inovação na área de energia solar e eólica, mostrando como a especialização inteligente pode transformar um setor regional em um motor de desenvolvimento global.
Outro exemplo de sucesso é o cluster de saúde digital na Estônia. Mesmo sendo um país pequeno em termos de dimensões geográficas e população, o país já era reconhecido internacionalmente pelos avanços do setor de Tecnologias da Inovação e da Comunicação (TIC) e utilizou o RIS3 para direcionar seus esforços de inovação para uma nova área de especialização inteligente, a saúde digital. Esse foco resultou no desenvolvimento de um cluster robusto, com 56 membros de 15 diferentes áreas do conhecimento, que integra tecnologia da informação com serviços de saúde, gerando soluções inovadoras que melhoraram o acesso e a qualidade dos serviços de saúde, tanto no setor público quanto no privado. O Connected Health, cluster estoniano de saúde digital, é hoje um modelo de referência para outros países que buscam inovar no setor de saúde por meio da digitalização.
Esses exemplos mostram como o RIS3 pode ser aplicado de forma eficaz para criar clusters que fomentam a inovação e o desenvolvimento econômico. Ao direcionar os recursos para áreas específicas de especialização e priorizar o empreendedorismo inovador, os territórios que aplicam o modelo são capazes de maximizar o retorno dos investimentos em inovação e gerar benefícios econômicos sustentáveis.
IMPORTÂNCIA DE ECOSSISTEMAS DE INOVAÇÃO COM ESPECIALIDADES COMPLEMENTARES: COOPERAÇÃO EM VEZ DE COMPETIÇÃO
Um dos grandes méritos do RIS3 é sua capacidade de promover a cooperação entre territórios em vez de fomentar uma competição destrutiva. Ao identificar áreas de especialização com base nas vantagens competitivas de cada região, o RIS3 evita que diferentes territórios invistam de forma duplicada nas mesmas áreas, o que pode gerar uma concorrência predatória que prejudica a todos.
Em vez de competir diretamente, os ecossistemas de inovação, guiados pelo RIS3, são incentivados a buscar áreas de complementaridade, onde possam cooperar para criar sinergias e aumentar a competitividade coletiva. Essa abordagem é particularmente importante em um mundo globalizado, onde as cadeias de valor são interdependentes e a colaboração entre diferentes regiões pode gerar inovações mais robustas e abrangentes.
Por exemplo, uma região com especialização em Tecnologias para a Agricultura de Grãos pode cooperar com outra região especializada em Tecnologias de Irrigação, criando soluções integradas que beneficiam ambos os ecossistemas e ampliam o impacto das inovações geradas. O mesmo pode ser dito de uma região que foca em Biotecnologia cooperando com outra especializada em Inteligência Artificial para criar novas soluções personalizadas nos Serviços de Saúde e Bem-estar.
Essa cooperação evita o desperdício de recursos e cria um ambiente de inovação colaborativa, onde as regiões trabalham juntas para enfrentar desafios globais comuns, como as mudanças climáticas, a transição energética e a saúde pública. O RIS3, portanto, não é apenas uma estratégia para promover a inovação dentro de cada região, mas também uma ferramenta para fomentar a cooperação entre regiões, criando redes de inovação que cruzam fronteiras nacionais e promovem o desenvolvimento global.
Para os governos estaduais e federais, inclusive no Brasil, essa é uma lição importante. As políticas públicas voltadas ao desenvolvimento econômico e à inovação devem incentivar a complementaridade entre territórios e evitar a competição predatória que fragmenta os esforços e reduz a eficácia dos investimentos. O RIS3 fornece uma estrutura que pode ser adotada por governos em todo o mundo para criar ecossistemas de inovação mais colaborativos e eficientes.
CONCLUSÃO: REDES DE COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Em um mundo de concorrência global acirrada e constantes mudanças tecnológicas, a adoção de estratégias inteligentes para o desenvolvimento de ecossistemas de inovação que priorizam as principais vocações econômicas de cada região é crucial. O RIS3 se destaca como uma ferramenta poderosa que orienta os investimentos em inovação de forma estratégica em cada região e também promove a cooperação entre territórios, maximiza o potencial de desenvolvimento de uma forma efetivamente sustentável.
Ao fomentar a especialização inteligente e evitar a dispersão de recursos, o RIS3 orienta as lideranças de cada território a desenvolver estratégias que construam vantagens competitivas duradouras em áreas específicas, ao mesmo tempo em que incentiva a criação de novos negócios inovadores, incluindo startups, e melhora a competitividade das empresas já estabelecidas. Um dos resultados possíveis após a adoção bem-sucedida deste modelo em territórios complementares é a criação de redes colaborativas de ecossistemas de inovação, com potencial efetivo de aumentar a competitividade global dos respectivos territórios participantes, que passam a desenvolver, de maneira mais rápida e inovadora, soluções para os desafios mais urgentes dos mercados e da sociedade como um todo.
Obviamente, o RIS3 por si só não é uma ‘receita de bolo’ e nem um ‘remédio para todas as dores’. É um framework em permanente evolução – inclusive o RIS4 já está em desenvolvimento – com boas práticas que podem e devem ser adaptadas de acordo com a realidade e a necessidade de cada território. Tal método já poderia ter inspirado as políticas públicas de desenvolvimento econômico e inovação no Brasil há bastante tempo, mas apesar de territórios já terem adotado o RIS3 com algum sucesso, ainda são iniciativas pontuais e que, portanto, ainda não foram devidamente institucionalizadas. Enquanto isso, nota-se que vários territórios no país têm visto seus setores econômicos perdendo competitividade.
Fica, com isso, a oportunidade e a necessidade urgente para que os administradores públicos do Brasil, especialmente dos Estados e do Governo Federal, nacionalizem o RIS3 ou criem um modelo nacional equivalente. Isto deve ser visto como uma prioridade estratégica, para maximizar o impacto dos investimentos em inovação – públicos e privados – e garantir um futuro mais próspero, sustentável e equilibrado.
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