[CULTURA DIGITAL] Sobre meninos, lobos e os novos humanos

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[CULTURA DIGITAL] Sobre meninos, lobos e os novos humanos

Jovens adultos estão encontrando maneiras de confundir softwares de reconhecimento facial – camuflagem contra inteligência artificial

Jovens adultos estão encontrando maneiras de confundir softwares de reconhecimento facial, encobrindo pontos de rastreamento em seus rostos – é a camuflagem contra a inteligência artificial. / Foto: Arseny Togulev (Unsplash


[22.07.2022]


Por Alexandre Adoglio, CMO na Sonica e Diretor no grupo Marketing&Vendas/ACATE Startups.
Escreve quinzenalmente sobre Cultura Digital para o SC Inova.

Foi durante estes recentes protestos que assolam a Europa durante o verão de 2022.

Em meio à multidão exigindo seus direitos perante a crise econômica, ou contra o impacto da regulação de carbono na agricultura, apareceram alguns jovens com o rosto um pouco destoante de todos ali. Utilizavam maquiagem contra o reconhecimento facial.

Este jovens adultos europeus estão encontrando maneiras de superar o software de reconhecimento facial, encobrindo ou sombreando pontos específicos em seus rostos que o software rastreia. Não existe nenhuma lei no mundo que proíba este tipo de atitude, e estes jovens estão alegando que é assim que querem se expressar. De certa forma brilhante porque as empresas gastam bilhões para desenvolver essa tecnologia que está sendo derrotada pela pintura facial de carnaval e fios extras de cabelo que deformam o formato do rosto. É como uma camuflagem contra A.I.

Não que seja novidade, pois este tipo de “arte” vem sendo difundida desde 2012, mas ganhou impulso perante as máscaras generalizadas disponíveis da pandemia, levando a uma abordagem artística encontrada nos protetores faciais pintados personalizados para que as pessoas pudessem ser quem ou o que quiserem. Quase um avatar na vida real.

Fato que nos leva a questionar como a adoção de novas tecnologias pode ser impactada pela natureza humana, especialmente quando estamos finalizando esta fase de gestão das massas com centralização industrial/tecnológica e começando uma nova era construída entre uma crise ambiental mundial e conflitos políticos de escala global.

HOMO DEUS

“Todos os dias, milhões de pessoas decidem dar ao smartphone um pouco mais de controle sobre suas vidas ou experimentar um novo e mais eficaz medicamento antidepressivo. Em busca da saúde, da felicidade e do poder, os humanos vão gradualmente mudando primeiro uma de suas características e depois outra, e mais outra, até que não sejam mais humanos.”

Com esta citação no livro Homo Deus: A Brief History of Tomorrow, Yuval Noah Harari analisa como estamos ao meio de um upgrade da raça humana, e como a jornada de integração da mente com as tecnologias emergentes está reconfigurando as pessoas. Nossas vidas estão sendo moldadas pelos serviços tecnológicos como nunca antes, desde as rotinas diárias dos lembretes que apitam nos dispositivos, passando pelas intermináveis reuniões remotas e os chats profissionais e pessoais que substituíram as conversas interpessoais.

Não seria somente uma preocupação de substituição dos humanos pelos robôs ou inteligência artificial, mas como esta interação está nos colocando num caminho irreversível que nos isola uns dos outros e acelera os processos de segregação. Por exemplo, tecnologias criadas outrora para benefício social, como as redes sociais, são o expoente máximo da polarização e formação de comunidades fechadas, que não permitem a evolução de conceitos libertários que idealizamos como ideias para uma sociedade sadia.

É o nascimento das novas categorias de humanos, o Homo Deus de um lado e os Inúteis de outro.

O NOVO VIP

Um exemplo prático pode ser observado em uma nova funcionalidade dos carros Tesla. Desde 2021 o tão famoso auto-piloto só é liberado para condutores “certificados” pela empresa, ou seja, somente aqueles estiverem dentro de critérios estabelecidos poderão acessar a funcionalidade. Porém os proprietários da Tesla tiveram que pagar US$ 5.000 extras para que seus carros fossem equipados com o software Autopilot com recursos de segurança adicionais, como frenagem de emergência automatizada e alerta de colisão lateral, mas não foram avisados da tal certificação exigida no ato da compra. Os recursos eram “completamente inoperáveis”, de acordo com uma denúncia.

Em determinado momento, sem nenhum aviso antecipado, botão de download começou a solicitar a permissão para avaliar o comportamento de direção usando a calculadora de seguros da Tesla. Se o comportamento de direção for bom por sete dias, o acesso beta é concedido, levando muitos proprietários que pagaram pela funcionalidade a questionaram o porque desta condição não ter sido divulgada antes. 

E também a questão de exigência por um certo estilo de direção, visto que o auto-piloto seria feito exatamente para isso, que o motorista não precise colocar as mãos no volante. Como argumento a companhia diz ter informado estar trabalhando em uma “classificação de segurança” do motorista com base nos comportamentos de direção e no uso do piloto automático para afetar o custo do seguro.

Ou seja, não basta somente comprar o carro para reforçar um status social mas também você precisará ser certificado por alguns mecanismos para ter acesso a esta compra. É o VIP do VIP.

TUDO IGUAL, SÓ QUE DIFERENTE

Para finalizar temos uma outra abordagem de Yuval sobre o futuro da humanidade em relação à medicina. Durante o século XX, ela se concentrou em curar os doentes, e agora se concentra cada vez mais em melhorar a saúde das pessoas saudáveis, o que seria um projeto completamente diferente. E é assim tanto no sentido social como no político, pois enquanto a cura dos doentes é um projeto igualitário (que pressupõe um padrão de saúde e que se alguém está abaixo desse padrão, é ajudado a recuperar o nível adequado), o atual é um projeto elitista: vencer a morte. Não existe nenhum padrão que se aplique a todos.

Isto abre a possibilidade de criar enormes abismos entre ricos e pobres, maiores do que em qualquer momento anterior, ao longo da história. Muitas pessoas negam, dizem que isso não acontecerá porque temos a experiência do século XX, quando todos os avanços médicos estiveram, inicialmente, à disposição dos ricos, ou dos países mais avançados, e se espalharam progressivamente até chegar ao resto do mundo. Agora todos (ou quase) usufruem de antibióticos, vacinas e outros medicamentos – e isso vai acontecer de novo desta vez.

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Construir um robô capaz de funcionar como caçador-coletor de modo eficaz é algo extremamente complicado, mas criar um carro autônomo, ou um bot capaz de diagnosticar doenças melhor do que meu médico, isso é algo relativamente fácil. E é aqui que devemos considerar seriamente a possibilidade de que, embora os computadores permaneçam atrasados em relação aos humanos em muitos aspectos, no que se refere às tarefas que o sistema exige de nós, na maioria dos casos os computadores serão capazes de realizá-las, e até mesmo melhor.

O que vemos lembra um pouco a história de Pedro e o Lobo: estamos gritando “O lobo está chegando!” uma, duas, três vezes, e há os que dizem que há cinquenta anos já se previa que os computadores substituiriam os humanos e isso não aconteceu. Mas a verdade é que, a cada geração, o momento se aproxima, e previsões como essas alimentam o processo.

E dessa forma vamos ser testemunhas de como tecnologias com o reconhecimento facial vão remodelar nosso comportamento para sempre – ou se vai incentivar uma expressão mais pessoal com a maquiagem contra a Inteligência Artificial.

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